Etapas do caminho tântrico – uma introdução

Este texto traz uma breve introdução ao Tantra Yoga e delinea as três principais etapas do caminho.

Pode-se dizer que o Tantra é uma variação de Yoga. Neste caso, considerando-se como Yoga um método ou conjunto de técnicas que devem ser praticadas para alcançar a libertação espiritual. Um dos significados da palavra Tantra é teia ou rede e essa é uma das tradições de sabedoria indiana extremamente conectada com a ideia de sucessão mestre discípulo. Tantra também é o nome que se dá aos textos que transmitem os conhecimentos desta tradição.

Termos bastante conhecidos no momento do Yoga que tiveram origem ou que são muito enfatizados no Tantra são: chakras, kundalini e corpo sutil. Um fato desconhecido de grande parte dos praticantes é que as supostas “ginásticas de alongamento” ensinadas por aí como sendo Hatha Yoga ou alguma de suas variações tem origem tântrica. Pois o Hatha Yoga é um das “modalidades” tântricas mais conhecidas.

Vale ressaltar que não se pode separar o Tantra de outras tradições indianas como o Rāja Yoga, o Samkhya e o Vedanta. Pois, por eles terem tido origem no mesmo berço cultural e por suas ideias principais terem sido colhidas dos Vedas eles compartilham de conceitos comuns. Um desses conceitos são os cinco elementos densos ou Mahābhūta: espaço, ar, fogo, água e terra. Esse conceito é descrito e comentado em vários textos de várias tradições indianas, dentre eles: Yoga Sūtra de Patañjali, Samkhya Karikā e Bhagavad Gitā. Além disso, os cinco elementos são essenciais para várias práticas meditativas tântricas.

Embora haja algumas semelhanças com outros caminhos de libertação espiritual, um fator importante no Tantra é que a libertação não é vista como uma “fuga do mundo”, mas sim como uma união com o mundo. A libertação seria realizar que não há bem ou mal e, portanto, tanto faz estar aqui como não estar, pois a realidade é perfeita. Neste sentido, o sofrimento de que tanto se fala nessas tradições seria uma não-aceitação (por ignorância) da realidade.

Um fator essencial da prática tântrica que a distingue de outras práticas é a ênfase na recitação de mantras. Por exemplo, no Rāja Yoga praticamente não há recitação de mantras. Na verdade, o único mantra mencionado no Yoga Sūtra é o Om. A recitação de mantras é tão importante para o Tantra que a maioria dos mestres dá um mantra para o aluno recitar por algum tempo depois que ele é iniciado (depois que recebe Diksha, no bom sentido, não no sentido avacalhado que estamos vendo recentemente). Esse tempo pode durar anos, dependendo do mantra e do objetivo. No Tantra, geralmente se fala em centenas de milhares, ou talvez, milhões de repetições de um mantra, acompanhado de várias outras práticas ritualísticas como Nyasa.

Após o mestre observar a evolução de seu díscipulo, pode iniciá-lo na segunda etapa do percurso: os yantras. Os yantras são imagens, desenhos ou pinturas que representam devas específicos. Dependendo da prática, do ritual, do deva e dos chakras que serão trabalhados, yantras diferentes são empregados. O Yantra de Sri Tripura Sundari é mostrado na imagem abaixo.

Yantra de Tripura Sundari
Yantra de Tripura Sundari

Após a realização do Yantra o díscipulo pode ser iniciado ao Chakra Puja. Aqui temos dois termos que geralmente aparecem separadamente. Chakra significa círculo ou vórtice e puja pode significar ritual. Neste caso, especificamente, o Chakra Puja trata-se de um ritual em que os adeptos formam um círculo e, em geral, o mestre fica no centro do círculo, para realizarem determinados rituais secretos. Pouquíssimos alunos alcançam a graça de poderem ser iniciados neste tipo de prática. Poucas pessoas no mundo já participaram. Esta seria a etapa final do caminho tântrico e, para praticá-la seria necessário que o candidato já tivesse alcançado um elevado grau de realização especialmente em relação ao não-apego e a não ser afetado por objetos que causam perturbação ou desejo na maioria das pessoas.

Uma crítica à meditação como remédio

Adaptações e comentários a partir do texto de W. S. Hickey sobre os problemas de se utilizar a meditação apenas como mais um remédio.

Nas últimas décadas temos assistido a “uma explosão” de pesquisas sobre meditação e seus efeitos na saúde humana. Essas pesquisas têm sido realizadas por profissionais de diversas áreas, tais como: medicina, psicologia, neurociência, psiquiatria, fisioterapia, etc. As técnicas de meditação abordadas são bastante variadas, desde técnicas de Raja-Yoga, passando por meditação transcendental, até o que está se popularizando como “Mindfulness” (Atenção Plena). Essa última técnica teve como um dos responsáveis por sua popularização o biólogo Jon Kabat-Zinn, criador da abordagem MBSR (Mindfulness Based Stress Reduction). Outro grupo responsável pela intensificação desses estudos são os pesquisadores associados com o Instituo Mind and Life.

Se procurarmos artigos contendo palavras-chave relacionadas com meditação em plataformas de publicações científicas encontraremos milhares de artigos publicados nos últimos anos tentando demonstrar a eficácia de técnicas de Yoga e meditação para problemas que variam desde miopia até cardiopatias. Por exemplo, uma busca realizada no dia de publicação deste texto pela ocorrência das palavras meditation ou mindfulness nos abstracts de artigos publicados nos últimos 5 anos retornou as seguintes quantidades de artigos para as plataformas abaixo:

Embora exista uma grande variedade de abordagens de meditação utilizadas nos experimentos descritos nos artigos, a MBSR tem se destacado como a mais utilizada. W. S. Hickey critica essa abordagem em alguns aspectos:

  • Meditação budista sem Budismo. Hickey afirma que há dois pressupostos problemáticas nesse aspecto. Primeiro, a prática fundamental do Budismo é a meditação. Segundo, as ideias ou práticas religiosas Budistas e Hinduistas são universais e transcendem culturas e contextos históricos.
  • A MBSR separa as práticas yóguicas e meditativas de seu contexto ético e moral.
  • A MBSR reforça a ideia de que a prática individual é o aspecto mais importante para o bem-estar pessoal.

A primeira crítica vai de encontro a um hábito comum no ocidente, o refinamento (no mau sentido). Vejamos o que ocorreu com o Yoga, por exemplo. O Yoga, originalmente, é uma técnica milenar de transformação e libertação espiritual. Segundo sua filosofia, as técnicas visam libertar o praticante do sofrimento e dos ciclos de renascimento. O Yoga tradicional de Patanjali é formado por oito membros, sendo um deles a prática de ásanas ou posturas físicas. Segundo a filosofia indiana, os ásanas fornecem um modo de permitir a ativação de centros de energia sutil e o despertar de energias espirituais latentes no corpo sutil do ser humano. Porém, um dos efeitos colaterais dos ásanas é flexibilidade e saúde física. O que algumas pessoas fazem? Confundem o efeito colateral com o objetivo real. Essa confusão pode ser proposital ou por engano. Não é um problema sério alguém praticar ásanas do Yoga com o único objetivo de saúde física. O problema é reduzir o Yoga a isso.

Problema semelhante ocorre com práticas de meditação. Algumas pessoas, numa tentativa forçosa de popularização, desassociam totalmente as práticas de meditação do Yoga e do Budismo de aspectos espirituais. A meditação está se tornando uma ginástica cerebral. Algo pior que pode ocorrer é praticar técnicas específicas de meditação, que só fazem sentido no contexto do Yoga e do Budismo, associadas com práticas de outros caminhos espirituais que não possuem ou aceitam conceitos como: renascimento, karma, devas, etc.

Outro fator muito importante que está se perdendo com a transformação da meditação em ginástica mental é a necessidade de uma comunidade de prática que possui objetivos comuns respaldados em preceitos éticos que fazem sentido para aquele contexto. Por exemplo, no Budismo há o princípio dos três refúgios: Buda, Dharma e Sanga. Sendo que a Sanga, ou comunidade, é uma peça fundamental para apoiar as pessoas que têm dificuldades para se libertar de maus hábitos ou vícios. Um fato relacionado ao conceito de comunidade é o grande sucesso da metodologia dos A.A. em que o viciado se apóia em uma comunidade com a qual pode contar e possui alguém mais experiente dentro da comunidade para servir de tutor. Podemos nos questionar como, numa sociedade movida pela grande quantidade de informações e pela consequente tentativa de autodidatismo em tudo, alguém poderia obter os reais frutos da meditação praticando-a isolado de uma comunidade e de modo autodidata?

Assim como muitas pessoas acham que Yoga é ásana, muitas pessoas acham que Budismo é meditação. Isso não é verdade. Tanto no Yoga quanto no Budismo existem preceitos éticos que devem ser seguidos se o praticante desejar avançar em seu caminho espiritual. No caso do Yoga, há os Yamas e Nyiamas.

Yamas:

  • Ahiṃsā: não-violência;
  • Satya: verdade;
  • Asteya: não roubar;
  • Brahmacharya: contenção sexual, refrear os excessos da sexualidade;
  • Aparigraha: não ser avaro.

Nyiamas:

  • Śauca: pureza;
  • Santoṣa: contentamento;
  • Tapas: práticas acéticas;
  • Svādhyāya: auto-estudo;
  • Īśvarapraṇidhāna: devoção a Ishvara.

Um dos principais ensinamentos budistas se refere à observação do Nobre Caminho Óctuplo:

  • Visão correta;
  • Intenção correta;
  • Fala correta;
  • Ação correta;
  • Meio de vida correto;
  • Esforço correto;
  • Atenção correta;
  • Concentração correta;

Não irei discorrer sobre Yamas/Niyamas e Nobre Caminho Óctuplo neste texto. Estou listando-os aqui apenas para que o leitor perceba que esses caminhos são completos e autocontidos. Não se restrigem a ásanas ou à meditação e, consequentemente, são capazes de afetar positivamente toda a vida do praticante.

Enfim, podemos encarar essa “corrida maluca” para se popularizar a meditação como uma prática secular pela perspectiva positiva de que quem a praticar poderá trazer frutos positivos para a sua vida e para a sua saúde. Esses resultados positivos para a saúde já estão suficientemente comprovados para os órgãos de saúde pública brasileiros, de modo que o SUS já permite e sugere a utilização de práticas que eles chamam coletivamente de terapias alternativas. No entanto, só alcançarão os reais objetivos da meditação aqueles que a praticarem dentro de um contexto específico, seguindo todas as prescrições milenares e se beneficiando da orientação de pessoas mais experientes que fazem parte de uma comunidade que possui os mesmos objetivos de desenvolvimento espiritual.

Iluminações – Jack Kornfield

Este texto foi traduzido por Eanes T. Pereira do texto em inglês disponível neste link.
Em um retiro de meditação, há varios anos, após uma tarde de conversa sobre o Dharma, uma mulher levantou sua mão e perguntou uma última questão: “A iluminação é apenas um mito?” Quando nós professores voltamos de nossa reunião da tarde, perguntamos uns aos outros essa questão. Nós trocamos histórias sobre a liberdade criativa de Ajahn Chah, o enorme campo de metta em torno de Dipa Ma, a gargalhada alegre de Poonja e nossos próprios despertares. De fato, existe iluminação.

Mas a palavra iluminação é usada de modos diferentes e que podem ser confusos. Seriam as iluminações do Zen, dos tibetanos, do Hinduísmo ou Theravada as mesmas? Qual é a diferença entre uma experiência de iluminaçao e a iluminação completa? Como as pessoas iluminadas se parecem?

Abordagens para a iluminação
No começo de minha prática na Asia, fui forçado a lidar com essas questões diretamente. Meus professores, Ajahn Chah na Tailandia e Mahasi Sayadaw em Burma, eram ambos considerados dentre os mestres mais iluminados do Budismo Teravada. Enquanto que eles descreviam o objetivo da prática como liberdade da cobiça, do ódio e da delusão, eles não concordam sobre como alcançar a iluminação nem como ela era experienciada. Eu comecei meu treinamento monástico praticando na comunidade com Ajahn Chah. Então, eu fui estudar num monastério de Mahasi Sayadaw, onde o caminho da liberação foca inteiramente em longos retiros silenciosos de meditação.

No sistema de Mahasi, você senta e caminha por semanas no contexto de retiro e continuamente nota o surgimento da respiração, dos pensamentos, dos sentimentos e sensações continuamente até a mindfulness ficar tão refinada que não nada mais que surgimento e passagem instantânea. Você passa por estágios de luminosidade, alegria, medo e a dissolução de tudo que você toma como sólido. A mente torna-se imóvel, descansando num lugar de estabilidade e equanimidade, transparente a todas as experiências. pensamentos e medos, anseios e amores. Além disso, vem um “largar” de identidade com qualquer coisa nesse mundo, uma abertura para o incondicionado além da mente e do corpo; você entra no fluxo de liberação. Como ensinado por Mahasi Sayadaw, este primeiro sabor de entrada no fluxo para a iluminação requer purificação e concentração forte levando a uma experiência de cessação que começa a desenraizar a ganância, o ódio e a delusão.

Quando retornei para praticar na comunidade de Ajahn Chah após mais de um ano de retiro silencioso de Mahasi, eu encontrei todas essas experiências – dissolvendo meu corpo em luz, profundos insights em vazio, horas de vasta estabilidade e liberdade. Ajahn Chah entendeu e apreciou as experiências a partir de sua própria profunda sabedoria. Então, ele sorriu e disse, “Bem, outra coisa para deixar passar.” Essa abordagem para a iluminação não era baseada em ter qualquer experiência de meditação, não importa quão profunda. Como Ajahn Chah os descreveu, os estados meditativos não são importantes por si mesmos. A meditação é um modo de aquietar a mente de modo que você possa praticar o dia inteiro onde quer que esteja; veja quando há avidez ou aversão, apego ou sofrimento; e deixe passar. O que fica é a iluminação, sempre encontrada aqui e agora, uma liberação de identidade com as condições mutáveis do mundo, um repousar em consciência. Isto envolve uma simples mas profunda mudança de identidade da míriade, de estados condicionados sempre mutáveis para uma consciência incondicionada – a consciência que sabe tudo. Na abordagem de Ajahn Chah, a liberação do emaranhamento na ganância, no ódio e na delusão não acontece por meio de retiros, concentração e cessação mas dessa mudança profunda de identidade.

Como podemos entender essas abordagens aparentemente diferentes para a iluminação? Os textos budistas contém algumas das mesmas descrições contrastantes. Em muitos textos, o nirvana é descrito na linguagem de negação e como na abordagem ensinada por Mahasi Sayadaw, a iluminação é apresentada como o fim do sofrimento por meio de tirar os fogos do desejo e desenraizar todas as formas de apego. A eliminação do sofrimento é praticada por purificação e concentração, confrontando as forças da ganância e raiva e ultrapassando-as. Quando o Buddha foi questionado, “Você ensina a aniquilação? O nirvana é o fim das coisas como as conhecemos?” ele respondeu, “Eu ensino apenas uma forma de aniquilação: a extinção da ganância, a extinção do ódio, a extinção da delusão. Isto é chamo de nirvana”.

Há também nos textos um modo mais positivo de entender a iluminação. Aqui, o nirvana é descrito como a felicidade mais elevada; como paz, liberdade, pureza, estabilidade; e como o incondicionado, o atemporal, e imortal. Nesse entendimento, como na abordagem de Ajahn Chah, a liberação vem por meio de uma mudança de identidade – uma liberação do apego as condições mutáveis do mundo, um repousar na própria consciência, a ausência de morte.

Nesse entendimento, a liberação é uma mudança de identidade do falar de alguma coisa como “self”. Questionado, “Como aquele não será visto como o rei da morte?” o Buddha respondeu, “Para aqueles que não tomam qualquer coisa como eu ou meu, tal pessoa está liberta das armadilhas do rei da morte”. Exatamente desse modo, Ajahn Chah nos instruiu para permanecer em consciência e não nos identificar com nenhuma experiência como eu ou minha.

Encontrei uma prática similar em Bombay com Sri Nisargadatta, um mestre de Advaita. Seus ensinamentos sobre a iluminação requerima uma mudança de identificação com qualquer experiência para repousar em consciência onde quer que você esteja. Seu foco não era sobre aniquilição da ganância e da raiva. De fato, quando questionado se ele já ficou impaciente, Nisargadatta alegremente explicava, “Eu vejo, ouço e saboreio como você, sinto fome e sede; se o almoço não for servido a tempo, mesmo a impaciência surgirá. Tudo isto é percebido bastante claramente, mas de algum modo não estou nisto. Há percepção de tudo e senso de imensa distância. A impaciência surge; a fome surge. Mesmo quando doença e morte desse corpo surgem, elas não tem nada a ver com o que eu sou”. Isso é iluminação como uma mudança de identidade.

Então, aqui temos diferentes visões da iluminação. Por um lado, temos a liberação da ganância, do odio e da delusão alcançada por meio de concentração poderosa e purificação, enfatizada por muitos mestres de Mahasi e Sunlun Sayadaw ao Zen Rinzai. Por outro lado, temos a mudança de identidade refletida nos ensinamentos de Ajahn Chah, Buddhadasa, Soto Zen e Dzogchen. E há muitas outras abordagens; se você pratica Budismo Terra Pura, que a tradição mais disseminada na China, a abordagem de iluminação envolve devoção e entrega, sendo realizada pela graça de Buda.

Para entender essas diferenças, é mais sábio falar de iluminação no plural – como iluminações. É a mesma coisa com Deus. Existem tantas formas: Jehovah, Allah, Brahma, Jesus, Kali e assim por diante. Tão logo os seguidores digam que conhecem o único Deus verdadeiro, o conflito surge. De modo similar, se você falar de iluminação como uma coisa, o conflito surge e você perde a verdade.

Sabemos que o Buddha ensinou muitas abordagens diferentes para a iluminação, todas como meios hábeis para liberar o apego do sentido limitado de self e retornar para a pureza inerente de consciência. De modo similar, descobriremos que os ensinamentos sobre a consciência iluminada incluem muitas dimensões. Quando você experiencia mesmo a consciência livre de identificação com condições mutáveis, liberada da ganância e do ódio, você a encontra multifacetada, como uma mandala ou jóia, um cristal de muitos lados. Por uma faceta, o coração iluminado brilha com uma claridade luminosa, por outra como uma paz perfeita, por outra como uma compaixão ilimitada. A consciência é atemporal, sempre-presente, completamente vazia e cheia de todas as coisas. Mas quando um professor ou tradição enfatiza apenas uma dessas qualidades sobre as outras, é fácil ficar confuso, como se a iluminação verdadeira pudesse ser saboreada de apenas uma forma. Como a natureza partícula-onda da luz, a consciência iluminada é experienciada em uma miriade de modos belos.

Portais para a iluminação
Então quais práticas levam a essas iluminações? De modo mais central, o Budismo usa as práticas de libertação da atenção plena e do amor-bondade. Essas são mantidas pela prática de virtude, que nos liberta de ser pegos em energias reativas que causariam dano a nós mesmos e aos outros. Adicionado a isso estão práticas de calma, ou concentração, com as quais aprendemos a aquietar a mente; e práticas de sabedoria, que podem ver claramente como todas as coisas surgem e passam, como elas podem ser possuídas. Através dessas práticas vem a purificação e a cura e o surgimento de profunda compaixão. Gradualmente, há uma mudança de identidade do ser da pessoa que é pega em sofrimento, para a libertação. A liberação do sentido de self e de todas as condições de mudança do mundo traz entrada-no-fluxo, o primeiro estágio de iluminação.

Os portais mais comuns de entrada-no-fluxo na tradição Theravada são o portal de impermanência, o portal do sofrimento e o portal da ausência de self. Quando passamos pelo portal da impermanência, vemos mais e mais profundamente como toda experiência nasce e morre, como todo momento é novo. Num monastério onde eu praticava, fomos treinados a experienciar como toda a vida é vibração. Por longas horas de concentração refinada, podíamos sentir todos os sons e visões, a respiração, o processo de pensamentos – tudo que tomássemos para nós mesmos – como um campo de energia em mudança. A experiência brilhava, se dissolvendo momento a momento. Então, mudávamos nossa atenção das vibrações para o espaço estável do coração de presença. E e outro, dentro e fora – tudo desaparecia e conhecíamos a vasta quietude além da mudança. Isso é iluminação além do portal da impermanência.

Às vezes, entramos na iluminação atraves do portal do sofrimento. Sentamos no fogo da experiência humana e ao invés de fugir dela, despertamos por meio dela. No Sermão do Fogo, o Buddha declara, “Tudo está queimando. O olho, o nariz, a língua, o corpo, a mente, o mundo está queimando. Com o que está queimando? Está queimando com os fogos da ganância, da ira e da delusão.” Através do portal do sofrimento encaramos os fogos do desejo, da raiva, da guerra, do racismo e do medo. Nos abrimos para insatisfação, tristeza e perda. Aceitamos o sofrimento inerente na vida e estamos liberados. Descobrimos que o sofrimento não e “nossa” dor, ele é “a” dor – a dor do mundo. Um profundo desapego surge, a compaixão preenche o coração e encontramos a libertação.

Meu amigo Salam, um jornalista palestino e ativista, passou pelo portal do sofrimento quando brutalmente espancado em prisões de Israel. Esse tipo de sofrimento ocorre em todos os lados da guerra. Quando em conheci Salam em São Francisco, ele estava sendo homenageado por seu serviço em hospícios. Eu lhe perguntei o que o levou a esse trabalho. “Uma vez eu morri”, Salam disse-me. Chutado por um guarda, ele deitou no chão da cadeia com sangue saindo de sua boca e sua consciência flutuou para fora do corpo. Repentinamento, ele sentiu-se tão pacífico – um tipo de felicidade – como se ele visse que não era aquele corpo. “Eu era muito mais: eu era a bota e o guarda, o cordeiro chamando fora das paredes da estação policial. Eu era tudo aquilo.” Salam disse-me. “Quando eu sai da cadeia, eu não podia mais tomar partido. Eu casei com uma mulher judia e tive filhos judaico-palestinos. Essa é minha resposta.” Salam explica, “Agora, eu sento com pessoas que estão morrendo por que estão com medo e eu posso segurar suas mãos e reassegurá-las de que é perfeitamente seguro.” Ele despertou por meio do portal do sofrimento.

Às vezes, nós despertamos pelo portal da abnegação. A experiência de abnegação pode ajudar nos modos mais simples. Na meditação caminhando, notamos com cada passo o surgimento espontâneo de pensamentos, sentimentos, sensações, apenas para observá-los desaparecerem. A quem eles pertencem? Onde eles vão? De volta ao vazio, que é onde eu fui ontem, tão bem quanto nossa infância, Sócrates, Genghis Khan e os construtores das pirâmides.

À medida que deixamos passar o apego, sentimos o altruísmo tentador das coisas. Às vezes os limites se dissolvem e não podemos separar-nos da ameixeira, do cantar dos pássaros ou do tráfego matinal. O sentido inteiro de self torna-se experiência vazia de surgimento na consciência. Mais e mais profundamente, entendemos a alegria do “sem self, sem problemas.” Nós provamos a iluminação através do portal do altruísmo e do vazio.

Há muitos outros portais: os portais da compaixão, da pureza, da entrega, do amor. Há também o que é chamado de “portal sem portal”. Um professor descreve-o dessa forma: “Eu fui por meses a treinamentos de retiros e nada espetacular aconteceria, nenhuma grande experiência. Ainda assim de algum modo tudo mudou. O que mais me transformou foram as horas infindáveis de atenção plena e compaixão, dar atenção e cuidado ao que eu estava fazendo. Eu descobri como eu automaticamente apertava e segurava e o com aquele entendimento eu comecei a deixar passar, a abrir para uma apreciação do que quer que estivesse presente. Eu achei uma facilidade. Eu desisti do esforço. Me tornei menos sério, menos preocupado comigo mesmo. Minha bondade se aprofundou. Eu experimentei uma profunda liberdade, simplesmente o fruto de estar presente sempre.” Isso era seu portal sem portal.

Expressões de iluminação
Qualquer que seja seu portal para a iluminação, o primeiro sabor real, entrada na correnteza, é seguido por muitos outros sabores quando aprendemos a estabilizar, aprofundar e corporificar esta sabedoria em nossa própria vida única. Com o que isso se parece? As facetas da iluminação expressam a si mesmas maravilhosamente em nossos professores. Cada um manifesta a iluminação com seus próprios sabores.

Dipa Ma, uma maravilhosa avó em Calcutá, foi uma das grandes mestres de nossa tradição. Uma pessoa pequena com uma mente poderosamente treinada, Dipa Ma expressou iluminação como amor. Ela devotamente instruiu seus alunos em atenção plena e amor-bondade e então ela os abraçava – pondo suas mãos em suas cabeças, face e ombros, cochichando frases de “metta”. Eles se embriagavam de amor. Como Dipa Ma, Ammachi, uma professora Hindu do sul da Índia, manifesta a iluminação como a “guru do abraço”. Ela entra em transe e durante toda a noite abraça as pessoas; ela deve tomar umas 2000 pessoas em seu colo e abraça-las. Isso é iluminação como amor.

Para o mestre Zen Suzuki Roshi a iluminação foi expressa estando apenas onde você está. Uma mulher disse a Suzuki Roshi que ela achava difícil misturar a prática Zen com as demandas de ser uma dona de casa: “Eu sinto que estou tentando subir uma escada, mas todo passo para cima eu escorrego dois passos para baixo.” “Esqueça a escada”, disse Suzuki Roshi. “Quando você desperta, tudo está bem aqui no solo.” Ele explicou como o desejo de obter alguma coisa significa perder a realidade do presente. “Quando você entende a verdade de que tudo muda e encontra sua compostura nela, então você se encontra no nirvana.” Posteriormente questionado sobre a iluminação, Suzuki Roshi disse, “Estritamente falando não há seres iluminados; há apenas a atividade iluminada.” Se você pensa que você está iluminado, não é isso. O objetivo é deixar de lado ser alguém especial e encontrar cada momento com a mente de principiante.

Mahasi Sayadaw, o mestre Burmês, expressou a iluminação como vazio. Observando-o em suas visitas à América, vimos que ele raramente gargalhava ou julgava. Ao invés, ele exalava uma equanimidade quieta. Os eventos e as conversas aconteciam em torno dele enquanto ele permanecia estável. Ele era como o espaço – transparente, ninguém lá. Isto é a iluminação como vazio.

Para Ajahn Jumnien, um mestre Thai da floresta, o despertar não é apenas vazio; é cheio. Seu robe é coberto por centenas de medalhões sagrados e ele emprega duzias de meios hábeis para ensinar – meditações guiadas, cânticos sagrados, mantras, chakras e práticas de energia, remédios da floresta, estórias de animais e rituais xamânicos. Seu Dharma é toda-hora, não para, cheio de vida e alegria. Há um senso de abundância nele e a felicidade apenas brota como uma fonte. Ele expressa iluminação como plenitude.

Thich Nhat Hanh expressa a iluminação como atenção plena. Quando ele vem falar em Spirit Rock, 3.000 pessoas sentam meditativamente na vertente e comem suas maçãs atentamente em preparação para sua chegada. Um sino e tocado e ele caminha vagarosamente e deliberadamente pela estrada – tão atentamente que todo mundo suspira, “Ahhh”. A consciência de 3.000 pessoas é transformada apenas vendo este homem caminhar, cada passo é o universo inteiro. Quando olhamos, mergulhamos na realidade do eterno presente. Isto é onde despertamos. A iluminação como atenção plena.

O Dalai Lama expressa a iluminação como benção compassiva. Por exemplo, uma vez no fim de sua estadia num hotel em San Franscisco, ele pediu ao gerente para trazer todos os empregados. Isso significava as pessoas que cortavam os vegetais na cozinha, que limpavam os carpetes tarde da noite, que arrumavam as camas. A grande entrada de garagem circular preenchida com todos eles que faziam esse hotel funcionar mas que eram geralmente não reconhecidas. Uma por uma, ele olhor cada uma com presença completa, tomou a mão de cada pessoa e disse “Obrigado”, movendo-se sem pressa apenas para ter certeza que ele conectou-se com cada um totalmente. O Dalai Lama personifica a iluminação como bênção compassiva.

A manifestação de Ajahn Chah’s foi como a gargalhada de sabedoria. Seja com generais ou ministros, fazendeiros ou cozinheiros, ele diria, “Quando eu vi o quanto as pessoas estão se esforçando, eu olhei para elas com grande simpatia e perguntei, você está sofrendo? Ah, você deve estar muito apegada. Por que não deixar passar?” Seus ensinamentos eram profundos e diretos ao ponto. Ele diria, “Se você deixar passar um pouco, você será um pouco feliz. Se você deixar passar muito, você será muito feliz. Se você deixar passar completamente, você será completamente feliz.” Ele viu o sofrimento, sua causa, e que a liberdade é possível em qualquer momento. Ele expressou a iluminação como sabedoria.

Quando as pessoas lêem estórias, elas podem perguntar, “Como elas se relacionam comigo? Eu quero essas iluminações. Como eu as obtenho? O que eu deveria fazer?” A jóia da iluminação nos convida a despertar por meio de muitos meios hábeis. Mahasi Sayadaw diria, “Para encontrar o vazio, note cada momento único até que o que você pensa ser o mundo se dissolva e você conhecerá a liberdade.” Ajahn Chah diria, “Apenas deixe passar e torne-se a consciência, seja aquele que sabe.” Dipa Ma diria, “Ame aconteça o que acontecer.” Thich Nhat Hanh diria, “Repouse em atenção plena, este momento, o eterno presente.” Ajahn Jumnien diria, “Seja feliz sem causa.” Suzuki Roshi diria, “Apenas esteja exatamente onde você está. Ao invés de esperar pelo ônibus, entenda que você está no bus.”

Então, a iluminação é um mito? Não. Ela não está longe. Ela é liberdade aqui e agora, a ser saboreada quando quer que você se abra pra ela. Em meu papel como professor, eu tenho o privilégio de ver a bênção das iluminações despertarem em tantos meditantes que vêm para a prática de Dharma e tornam-se transformados através de suas várias expressões. Quando sua tensão inicial e luta com a vida, a dúvida e o esforço fica de lado, eu obeservo seus corpos relaxarem, suas faces suavizarem, sua visão de Dharma se abrir, seus corações florescerem. Alguns tocam o que Buddhadas chamou “nirvana diário”. Outros vêm a conhecer uma pureza profunda de mente e a experienciar um sabor de liberação diretamente.

O Buddha declara, “Se não fosse possível libertar o coração do emaranhamento, eu não ensinaria vocês a fazer isso. Apenas por que é possível libertar o coração, há ensinamentos do Dharma da libertação, oferecidos de coração aberto ara o bem de todos os seres.”

Almejo por nada mais.

Obs.: Infelizmente, alguns sites utilizam nossa tradução sem mencionar a origem.