A Dificuldade de Manter a Xícara Vazia em Tempos de Internet

Erros comuns na relação professor-aluno no processo ensino-aprendizagem nas disciplinas de autoconhecimento.

Há uma historinha bastante conhecida no contexto de tradições de autoconhecimento que se refere à necessidade de nos desvencilharmos de todo conhecimento prévio que julgamos ter sobre um assunto antes de nos dirigirmos a um professor. A história conta que um determinado aluno foi visitar um mestre e chegou “cheio de conhecimento” falando de tudo que já sabia e de tudo que já tinha lido. O mestre o chamou para tomar um chá e começou a encher a xícara do aluno, mas mesmo depois que a xícara já estava cheia o mestre continuou derramando o chá na xícara. O aluno pediu para ele parar e perguntou por que ele continuava a derramar o chá mesmo com a xícara estando cheia. O mestre disse: da mesma forma que é impossível entrar novo chá nessa xícara é impossível entrar novo conhecimento na mente que já chega cheia. No Zen, esse ensinamento é traduzido na frase: “Mente Zen, mente de Principiante”.

Hoje em dia, é ainda mais difícil de manter as xícaras das nossas mentes vazias devido a grande facilidade de acesso à informação que a Web nos proporciona. No entanto, o que a maioria das pessoas que buscam o autoconhecimento não percebe, pelo menos no início, é que a sabedoria disponível em tradições como Yoga, Vedanta e Budismo não é como Matemática e Geografia que basta você pegar uns livros, ler algumas vezes, fazer exercícios e assim você saberá do conteúdo. Não, não é assim. A transmissão de sabedoria espiritual exige um método que está além das palavras e da abordagem utilizada em escolas e universidades.

Embora nas disciplinas de conhecimento material (chamemos assim), algumas pessoas possam se autointitular autodidatas, nas disciplinas de sabedoria espiritual isso é muito raro ou, praticamente, impossível. Mesmo aqueles que se dizem autodidatas estão enganados pois eles, no mínimo, leram algum livro que foi escrito por outra pessoa e, podemos dizer, essa outra pessoa ensinou indiretamente o conteúdo àquela que leu o livro. No caso de espiritualidade, pode haver uma transmissão espontânea chamada de shaktipat. Mesmo assim, a pessoa que recebe um shaktipat espontâneo vai precisar estudar, por um tempo, com um mestre se desejar ter conhecimento ou desenvolver habilidades mínimas para se tornar autônomo.

O problema pode se tornar ainda mais sério quando a pessoa procura um professor, mas só para cumprir tabela. Chega na aula achando que sabe tudo, mesmo sem expressar isso, ou às vezes nem percebe que está agindo como se soubesse de tudo.

Por exemplo, a pessoa tem determinada experiência durante uma prática e acha que foi algum despertar de chakra (mesmo que tal pessoa não saiba direito o que são chakras nem as possíveis localizações). A pessoa pergunta ao professor se aquela experiência é despertar de um chakra específico e o professor diz que acha que não por que naquela região não tem chakra nenhum, nem nas tradições que ele conhece se menciona a existência de chakra naquela região. O aluno sai e diz: continuo achando que foi a sensação de chakra por que eu li na revista XYZ que isso pode acontecer e eu dei uma palestra sobre isso, etc.

Outro exemplo: o aluno está com alguma dificuldade interna e acha que é devido às práticas, pede conselho ao professor se deve seguir o caminho A ou o caminho B. O professor diz pra seguir o caminho A, mas o aluno diz que acha melhor seguir o caminho B. Isso é, no mínimo, entristecedor. Se você pede um conselho já pensando em não seguir, pra quê pede?

O que vejo alguns professores fazerem em relação a esse tipo de atitudo de xícara cheia é, simplesmente, depois de algumas repetições do comportamento, se abster de dar opinião ou conselho. Em casos extremos, já vi o professor se recusar a ensinar qualquer coisa ao aluno sabichão, pois, afinal, se ele sabe tanto, veio aprender o quê?

Yoganidrá: História e Contexto

Este texto é um resumo do artigo “Yoganidrá: An Understanding of the History and Context” escrito por JASON BIRCH e JACQUELINE HARGREAVES.

O termo Yoganidrá (e as técnicas relacionadas) ficou popular a partir dos trabalhos dos professores da linhagem de Swami Satyananda Saraswati. Mas devido aos escândalos de envolvimento em abuso sexual de crianças atribuídos a Swami Satyananda Saraswati, alguns autores decidiram resgatar o histórico desta prática nas fontes textuais clássicas do Yoga.

A palavra yoganidrá é uma palavra composta que pode ser interpetrada de vários modos, por exemplo: o sono causado pelo yoga ou o sono do yoga. O significado específico do termo depende de seu contexto histórico. Uma das menções mais antigas ao termo ocorre no Mahabharata, datado de cerca de 300 A.C.. No Mahabharata, yoganidrá se refere ao sono de Vishnu entre os ciclos do universo. As referências mais antigas do termo yoganidrá não se referem a uma técnica mas uma descrição do sono transcendental de um deva.

As primeiras menções ao yoganidrá como técnica ocorrem em textos tântricos Shaiva e Budistas como o Cincinimatasarasamuccaya e o Mahamayatantra, respectivamente. Apenas nos séculos 11 a 12 é que surgem textos de Yoga descrevendo o yoganidrá como técnicas para a libertação. Ocorre em vários textos de Hatha e Rajayoga, o uso de yoganidrá como um sinônimo para um estado profundo de meditação conhecido como samadhi. Esse estado de sono yóguico transcendente seria alcançado por meio da prática de Shambhavi Mudrá, do desapego e da devoção ao guru.  Segundo o Yogataravali, o yoganidrá seria praticado repousando-se sobre a “cama do quarto estado” (turiya). O termo yoganidrá aparece no quarto capítulo da Haṭhapradīpikā, que descreve como Kechari Mudrá pode ser usado para alcançar samadhi. No século 17, o yoganidrá foi adotado como o nome de um ásana de yoga.

Swami Satyananda criou um sistematização de várias técnicas de yoga oriundas de diferentes tradições religiosas e chamou de yoganidrá. A sistematização proposta por ele é composta de sete partes:

  1. Preparação. Satyananda sugere que seja assumida a postura deitada chamada de śavásana. Mas em alguns textos de yoga não se menciona a necessidade de assumir essa postura para praticar yoganidrá;
  2. Resolução. Afirmação positiva, ou Sankalpa. Esse passo da prática é meio contraditório, pois nos textos clássicos de Yoga quando se fala em atingir o samadhi está subentendida a eliminação de todos os sankalpas da mente (Yoga é a cessação das atividades da mente, segundo Patanjali). Provavelmente, Swami Satyananda foi um dos responsáveis por integrar práticas de auto-sugestão como sendo sankalpa no yoganidrá, tendo sido, provavelmente, inspirado por terapias de relaxamento ocidentais;
  3. Rotação da consciência. Levar a mente de uma parte do corpo para outra numa sequência definida. Provavelmente, essa técnica foi derivada da técnica tântrica conhecida como nyasa. Há um precedente na literatura Yogui deste tipo de rotação de consciência numa variação do método de pratyahara em que o praticante leva sua atenção a 18 pontos vitais do corpo (marmasthana);
  4. Percepção da respiração. Observar a respiração nas narinas, no peito ou na passagem entre o baixo ventre e a garganta sem forçar ou mudá-la. Não há menções de técnicas para alcançar samadhi nos textos yoguis que sejam apenas observar a respiração, com exceção do Ajapa Japa que é como o Gayatri Mantra para os Yoguis e é capaz de despertar a Kundalini. Porém, há uma prática muito famosa no Budismo cujo princípio é observar a respiração, o anapannasati que é ensinado no Satipatthana Sutta;
  5. Sentimentos e sensações. Pareamento dos sentimentos opostos, exemplos: calor e frio, peso e leveza, dor e prazer, etc;
  6. Visualização. O professor descreve paisagens, oceanos, montanhas, templos, etc, que são visualizados pelo praticante. As técnicas de visualização são marca registrada da meditação tântrica, mas não fazem parte do Raja Yoga nem do Hatha Yoga;
  7. Finalização da prática. Repetição do Sankalpa e retorno gradual da mente ao estado acordado.

O texto original está disponível em: http://www.theluminescent.org/2015/01/yoganidra.html

Sutra 11 – Pada I – Yoga Sutra de Patanjali

Tradução do verso 11 do pada 1 do Yoga Sutra de Patanjali.

अनुभूतविषयासम्प्रमोषः स्मृतिः

anubhūtaviṣayāsampramoṣaḥ smṛtiḥ

अनुभूत (anubhūta), particípio passado  do verbo anubhū => percebido

विषय (viṣaya), masculino => objeto

अनुभूतविषय = अनुभूत + विषय => karmadhāraya => objetos percebidos

असंप्रमोष: (asaṃpramoṣa:), masculino, nominativo, singular => não deixar cair (a partir da memória), não deixado cair, não esquecido.

स्मृतिः (smṛtiḥ), feminino, nominativo, singular => memória

A palavra अनुभूतविषयासम्प्रमोषः e a palavra स्मृतिः formam um bahuvrīhi 

Tradução

Tradução literal: A memória é aquela da qual os objetos percebidos não são deixados cair.

Tradução adaptada: A memória não esquece os objetos percebidos.

Comentário

Observe que o contexto nos levou a interpretar “não deixar cair da memória” como sendo “esquecer”.

Para acessar a tradução dos outros versos, clique neste link.