Uma das formas de se estudar assuntos do colégio ou da universidade é por meio de grupos de estudo. Em grupos de estudo, nos unimos com pessoas que têm interesses comuns de aprender determinado assunto, utilizamos livros de autores diferentes e buscamos, por meio da discussão de pontos de vista diferentes, entender um assunto.
Grupos de estudos podem ser ótimos para aprender matemática, por exemplo. Pois na matemática, na maioria das vezes, existe uma solução exata para os problemas. O que poderia variar é o modo como chegamos a essa solução exata. Grupos de estudos são ótimos também para outras áreas como história, geografia, português, etc.
No entanto, não necessariamente essa estratégia de estudos vai funcionar para temas de autoconhecimento. Por exemplo, digamos que três amigos (João, Marcos e Mateus) desejam estudar sobre a espiritualidade do Yoga. Após fazerem algumas buscas na Internet, chegam à conclusão de que dois textos muito populares da espiritualidade yogui são os Yoga Sutras e a Bhagavad Gita.
O processo natural para se estudar um tema acadêmico laico, seria comprar livros sobre o tema, estudar esses livros, caso haja divergência entre os autores comparar as opiniões e, em seguida, tirar as suas próprias conclusões. É absolutamente normal que uma pessoa que estudou um pouco na escola ou na universidade queira repetir esse padrão de estudo com temas relacionados à tradição védica.
Mas, infelizmente, trago-lhe a notícia de que empregar a mesma abordagem que você emprega para estudar matemática ou geografia não vai dar certo com temas relacionados à tradição védica, por vários motivos. Vou comentar sobre alguns a seguir. Também quero deixar claro que estou incluindo no pacote tradição védica: yoga, tantra, mantra, vedanta, ayurveda, astrologia védica, etc.
Pode-se dizer que a tradição védica tem como um de seus objetivos primordiais conduzir o indivíduo à libertação. Ou, em outras palavras, levar o indivíduo a reconhecer sua liberdade. Aqui já começa a confusão, pois os estudantes que empregam a abordagem acadêmica vão querer comparar esse conceito de indivíduo com o que a psicologia ou psiquiatria chama de indivíduo. Não vou entrar por aí, tentando diferenciar. Basta dizer que são coisas diferentes.
Sabendo que o objetivo é levar o indivíduo a reconhecer sua liberdade e que há em nós algo (que por falta de uma palavra melhor vou chamar de ego) que atua boicotando esse reconhecimento da liberdade, temos o primeiro pressuposto que nega a possibilidade de alguém reconhecer essa liberdade sozinho sem o auxílio de alguém mais experiente ou de um professor (que já tenham pelo menos vislumbrado sua própria liberdade).
Agora, voltemos ao grupo de três amigos que compraram livros para estudar Yoga. Suponha que eles tenham comprado livros sobre o Yoga Sutra de três autores. Vou usar como exemplo a tradução do verso 15 do pada 1 de três autores diferentes:
- Tradução de Lilian Cristina Gulmini na Dissertação de Mestrado (O YOGAS SUTRA, DE PATAÑJALI Tradução e análise da obra, à luz de seus fundamentos contextuais, intertextuais e lingüísticos): Desapego é o discernimento sob comando daquele que está livre da sede do domínio objetivo das coisas vistas e ouvidas por tradição.
- Tradução de Glória Arieira no livro O Yoga que Conduz à Plenitude: O desapego é chamado de domínio de quem é livre de desejo por objeto visto ou escutado.
- Tradução de Gabriel Pradipika disponível em seu site: Vairāgya ou Renúncia (vairāgyam) se conhece (sañjñā) como o ato de subjugar (vaśīkāra) o desejo (vitṛṣṇasya) com relação a objetos (viṣaya) vistos (dṛṣṭa) ou acerca dos quais se ouviu repetidamente das escrituras (ānuśravika).
Meu objetivo aqui não é discutir se uma tradução é melhor que outra, nem dizer que uma tradição é correta e outra errada. Meu objetivo aqui é comentar sobre o que passaria na mente de alguém que se intitula autodidata ao tentar estudar o Yoga Sutra a partir da discussão de traduções de três autores diferentes.
Uma das expressões mais recorrentes em grupos de estudo desse tipo é: “Eu acho que…“. Aqui temos o primeiro erro. Partindo do pressuposto de que cada tradição estabelece o entendimento correto sobre determinado tema e esse entendimento correto é passado de professor a aluno sucessivamente através das gerações de estudantes, não podemos aceitar como correto alguém dizer que seu entendimento ainda influenciado pelo ego e, por isso mesmo um achismo, seja válido.
Agora voltemos a uma possível discussão no grupo de estudos de Yoga entre os três amigos. João diz que acha que renúncia e desapego são a mesma coisa. Marcos diz que acha que são diferentes pois um tradutor diz que renúncia é subjugar o desejo e o outro autor diz que desapego é discernimento, logo como discernimento é diferente de subjugar desejo, renúncia não pode ser igual a desapego. Mateus diz que acha que há algo de estranho nas traduções 1 e 2 por que uma diz que desapego é discernimento e a outra diz que desapego é domínio.
Agora eu lhe pergunto: tem como um estudo desse tipo chegar a algum lugar? Não é raro eu ouvir pessoas falando que estão em grupos de estudos de autoconhecimento há anos e a sensação é de que não andam, que andam em círculos.
O que está faltando para esse grupo achar um rumo? Primeiro, decidir que tradição irá seguir. Pois mesmo quando falamos de tradição védica, há várias linhas de raciocínio que podem variar de professor para professor. Segundo, é necessário ter um professor. Mesmo que as pessoas não tenham acesso pessoal a um professor. É necessário buscar textos e vídeos de um mesmo professor ou de um grupo de professores que pertençam a mesma linhagem.
Se você tentar estudar autoconhecimento seguindo a tradição védica como quem estuda literatura comparada, poderá até se tornar um grande acadêmico, mas dificilmente o objetivo desse conhecimento será alcançado: o reconhecimento de sua natureza livre.