Espiritualidade, à la carte ou self-service?

O risco de querermos inventar nosso caminho espiritual.

Houve um tempo em que alguém que quisesse aprender sobre Yoga (ásanas, ascese, pranayama, etc), meditação, Vedanta, Rituais ou qualquer assunto relacionado à espiritualidade deveria procurar por alguém que reconhecidamente era um professor daquele assunto. Veja que enfatizei a palavra reconhecidamente. O reconhecimento de que alguém era um professor de assuntos espirituais vinha de pelo menos duas origens: (i) de uma linhagem de mestres-díscipulos da qual o professor reconhecido fazia parte; (ii) de uma comunidade que estava em volta daquele professor, estudava com, punha em prática seus ensinamentos e os validava em sua vida.

Como muitos desses professores reconhecidos não tinha o ensino do autoconhecimento como uma profissão, mas como parte da sua vida, eles não divulgavam aos quatro ventos que estavam ensinando esses assuntos e que estavam à procura de alunos. Então, pra começo de conversa era meio complicado de achar alguns professores. Em segundo lugar, não bastava chegar ao professor e dizer que queria estudar com ele, você deveria mostrar-se merecedor do conhecimento.

O tempo passou, algumas tradições morreram de morte natural ou foram atacadas por outras tradições e destruídas. Alguns professores, por medo de que o conhecimento morresse com eles pediram para seguidores anotarem seus ensinamentos. Outros professores, simplesmente escreveram os ensinamentos ou comentários sobre os ensinamentos. Além disso, as tecnologias evoluíram permitindo que os textos fossem reproduzidos digitalmente favorecendo a propagação e divulgação dos assuntos espirituais.

Com a popularização da Internet, ficou muito fácil de encontrar textos sobre praticamente qualquer assunto “dito espiritual”. Melhor/Pior que isso, ficou muito fácil acessar “ensinamentos” de “mestres” espirituais via vídeos e áudios. Veja a quantidade de aspas que usei nas sentenças anteriores. Só por que os textos estão disponíveis facilmente não quer dizer que sua leitura ou estudo serão benéficos para qualquer pessoa em qualquer estágio de sua vida. Outro fator complicador é que os textos tradicionais estão escritos em sânscrito. A maioria deles não tem tradução. Por mais que os acadêmicos se esforcem para criar traduções “neutras” sem viés de linhagem, isso não é possível (na minha humilde opinião). A questão da tradução é ainda mais grave, devido a existirem muitas traduções péssimas de vários textos em sânscrito.

É evidente que o primeiro passo de qualquer pessoa hoje ao buscar conhecimentos sobre espiritualidade é fazer uma pesquisa na Internet. Essa possibilidade é uma bênção, não há como negar. Também é evidente que as primeiras tradições com as quais nos conectamos o fazemos por afinidade. (Uma amiga anarquista foi quem me fez perceber isso). E essa conexão por afinidade é similar a escolha de uma comida em um cardápio. Ou seja, à la carte. Não há outra forma de ser, exceto quando você não tem escolha. Mas isso não quer dizer que todos os caminhos são iguais. Nesse caso, devo admitir que Raul Seixas estava errado quando falava com seu amigo Pedro. Todos os caminhos não são iguais, por que cada tradição tem objetivos específicos e para objetivos específicos há métodos específicos. Você não deveria usar um martelo para pregar um parafuso.

Um problema comum na prática de meditação, por exemplo, é alguns praticantes de aplicativos praticarem meditações de tradições transcendentalistas cujo foco principal é o desenvolvimento espiritual de renunciantes (monges, swamis, etc) quando na verdade estão buscando algo para viverem melhor suas vidas e não para abandonar a vida prática. Isso pode dar um nó na cabeça, principalmente quando ocorrem efeitos que são considerados adversos para um pai ou mãe de família mas que para um monge ou swami é o efeito esperado. Se você se considera autodidata e não tem a quem recorrer para conversar sobre os efeitos da sua prática de meditação, o que vai fazer? Provavelmente, seu aplicativo não tem inteligência artificial para ajudar nisso.

Problemas podem surgir de pelo menos duas formas diferentes: (i) quando escolho meu caminho espiritual à la carte, mas invento minha sadhana; (ii) quando escolho práticas de caminhos espirituais diversos (self-service) e invento minha sadhana. Observe que em ambas as situações existe o “inventar a sadhana”. Sadhana é uma prática espiritual, desenvolvida dentro de tradições que tem objetivos específicos dentro daquela tradição. Quando um leigo, do alto de sua ignorância, decide escolher o mantra do mês no instagram para repetir antes de ir à missa, temos um problema. Não com a missa, mas com a mistura de sadhanas. Para que um caminho espiritual funcione adequadamente deve haver um alinhamento entre visão, prática (sadhana) e resultado.

Mesmo vivendo em uma socieade onde “o que eu acho” é mais importante do que a verdade/realidade, temos que perceber que, se você não sabe para onde está indo, pelo menos duas coisas podem acontecer: ou você não chegará a lugar algum, ou onde quer que você chegue você ficará satisfeito. Se você está caminhando na orla de João Pessoa e um amigo passa e pergunta onde você está indo e você diz estou indo à Roma. Ele vai rir de você e dizer que por ali você não vai chegar. Mas você poderá ficar chateado e dizer “eu seu o que estou sentindo, estou na direção certa”. Devemos sempre ter em mente a seguinte pergunta: “e se eu estiver errado e não souber?” É para ajudar a responder essa pergunta que existem os professores. Outro problema agravado pela popularização da Internet foi o aumento na quantidade de autodidatas. Pessoas que dizem que aprenderam a fazer algo sozinhas. Dizer que aprendeu a fazer algo sozinho é meio falacioso. Pois, se você leu algum texto ou ouviu alguém falando sobre o assunto, você não aprendeu sozinho. Mesmo que tenha sido uma revelação de algum ser sobrenatural, esse ser foi quem te falou.

Quando estamos falando de autoconhecimento, estamos falando em lidar com o ego. O ego é um bichinho muito traiçoeiro e esperto. É praticamente impossível você lidar com ele sozinho ou sem a ajuda de alguém mais experiente. Vejamos por exemplo, a prática de mantras. Nos tempos remotos, um mantra era passado para um aluno por um professor que conhecia aquele aluno, conhecia um pouco da personalidade dele, das dificuldades que ele tinha, dos pontos fortes e fracos. O professor ensinava um mantra que sabia que iria auxiliar o aluno em sua jornada. Mais que isso, o professor tinha praticado o mantra milhares de vezes.

Atualmente, tem muita gente ensinando coisas que nunca praticaram, ou por que fizeram um curso no domingo e na segunda já vai ensinar, ou por que leu um livro o mês passado e já que ensinar isso agora, sem nem ter integrado aquilo em sua vida. Hoje em dia, se você quer ganhar dinheiro fácil (como se isso fosse honestamente possível) você vai num site de vídeos online e digita “mantra para a prosperidade”.  Aí você executa simultaneamente o self-service (você quer um mantra para uma “fome” específica) e o à la carte (há vários artistas disponíveis cantando o mantra!).

As sadhanas foram criadas dentro de tradições e foram validadas pela prática de muitas pessoas durante séculos ou milênios. Por mais iluminado que você pense que é, dificilmente vai inventar algo novo em termos de abordagens espirituais e isso vai funcionar sem que seja aprimorado por gerações de praticantes. O ponto principal que devemos entender é que existe um método a ser seguido para que a sadhana funcione. Se você faz várias etapas de uma sadhana, mas do modo como lhe vem à cabeça, dificilmente você vai alcançar o objetivo. E não me venha dizer que o que vale é a intenção. Se o que vale é a intenção, então você não precisa praticar sadhana nenhuma, apenas mentalize sua intenção e veja onde você vai chegar.