O Verdadeiro Vijñaana-Bhairava Pode, Por Favor, Levantar-se?

Esta postagem é uma tradução livre e resumida do texto original em inglês disponível no site de Christopher Wallis (Hareesh). O Vijñana-Bhairava Tantra é um dos textos mais importantes do Tantra indiano e um dos únicos que sobreviveram com uma tradição real de prática. Disponível em inglês em: http://tantrikstudies.squarespace.com/blog/2016/10/6/will-the-real-vijaana-bhairava-please-stand-up

Um dos mais fascinantes, estranhos, misteriosos, texto de prática convincente na história do Yoga é o Vijñana-bhairava-tantra, “A Escritura de Bhairava, aquele que é Consciência”. Bhairava é um nome próprio para o inspirador aspecto de Deus, e é o nome divino preferido pelos Shaiva Tântricos não-duas de mais de 1000 anos atrás.

O caráter não-usual do texto é sinalizado no próprio título pelo uso único do nome Vijnãna-bhairava, referindo-se àquele Bhairava que não é uma deidade visualizável com atributos específicos, mas sim é nada mais que o poder inspirador da própria Consciência (“Awareness”). O Vijñana-bhairava é entendido como a “deidade” que misticamente revelou as técnicas yoguis do Vijñana-bhairava-tantra (VBT). Esta postagem constitui-se de uma introdução para o texto de 1200 anos de idade, organizando a maior parte do que tenho dito sobre ele em um único lugar.

Uma Breve Introdução

De um corpus que antes enumerava centenas de textos escriturais, o VBT é a única escritura Tântrica revelada com uma tradição contínua de estudo até o presente (além dos Siddhāntāgamas que ainda são estudados no distante sul da Índia). Aqui, ‘escritura’ refere-se ao trabalho falado (ou sobre o qual alega-se ter sido falado) pelo próprio Śiva (īśvara uvāca) ou pela própria Śakti (devyuvāca). Em outras palavras, um escritura é diretamente revelada por Deus. (No Tantra Budista, diz-se que as escrituras são diretamente reveladas pelo Buddha ou por um Bodhisattva celestial). Já que virtualmente todas as outras escrituras Śaiva incluíam injunções ritualísticas complexas, a execução das quais era suportada por uma forte base institucional, seu estudo decaiu ao longo de séculos de conquista Mulçumana que destruiu aquela base institucional. Essa é a razão principal pela qual na Kashemira do século 20, dominada por Mulçumanos, o VBT é a única escritura revelada da Era Tântrica que ainda é estudada e copiada.

Abaixo eu ofereço uma discussão das características interessantes do VBT que fazem ela sobrassair-se na história do Yoga, sem contar do Yoga Tântrico. (Note na seção seguinte que eu usei as traduções de Singh para os versos que eu ainda não tenho uma tradução própria).

Uma Orientação sobre o Texto e suas Práticas

Um exame inicial do VBT rapidamente revela ao leitor que ele está aqui lidando com um texto cujas ideias e pressupostos sobre a natureza da prática yogui são, em alguns modos, radicalmente diferentes daqueles da tradição do Yoga clássico. O Yoga-sūtra de Patañjali, o texto prototípico do Yoga clássico estressa o desengajamento dos objetos dos sentidos externos (vairāgya) e uma interiorização tão completa que o acadêmico do Yoga, Mircea Eliade, em toda a sua seriedade, comparou o yogui clássico a um vegetal. Em contraste, o VBT (escrito apenas quatro séculos após o Yogasūtra) frequentemente enfatiza um engajamento dinâmico com o mundo externo, embora com uma mudança significativa na atenção ou percepção em relação à natureza do mundo.

No Yoga-sūtra 1.16, lemos: ‘A ausência de paixão é uma ausência total de desejo por qualquer coisa material…’, sugerindo o cultivo da indiferença extrema em direção ao mundo externo. O VBT, por outro lado, assegura uma perspectiva diferente, exemplificada nos seguintes versos:

Aonde quer que a mente vá, seja em direção ao externo ou em direção ao interno, em todo lugar há o estado de Śiva, por que o Divino é todo-pervasivo. (116) Onde e quando a consciência do Senhor onipresente é revelada através dos órgãos dos sentidos, o objeto de sentido [deveria ser contemplado como] tendo exatamente a mesma natureza [como aquela da consciência]…(117)

De fato, este texto vai tão longe ao ponto de recomendar a absorção nos estados internos surgindo como um resultado direto de desfrutar os prazeres dos sentidos, incluindo sexo, comida, bebida e música. (Ao contrário da crença popular, isto é uma grande raridade em textos Tântricos, pelo menos nos Śaiva). Isso é exemplificado no verso 73:

O yogui que saboreia a música e o som ao ponto de mesclar-se com eles torna-se preenchido com uma felicidade sem paralelos, alcança uma consciência elevada e experimenta unidade com o Divino.

Isto deve ser visto como um afastamento radical da tradição anterior vigorasamente ascética, que afirmava que o envolvimento com os objetos dos sentidos inevitavelmente puxava o praticante para longa da experiência do Self verdadeiro e dolorasamente emaranhava-o com as vicissitudes da vida mundana. Contudo, enquanto ilustrando esse contraste, deve-se enfatizar que o VBT claramente não está adovgando a auto-indugência simples (a qual, como nossa experiência verifica, não é caminho de plenitude). O verso 71, por exemplo, especifica que a pessoa deveria tornar-se absorvido no sentimento interno de deleite que surge do estímulo externo  e não nos próprios estímulos. Então, a energia do desejo, previamente vista como um veneno na sādhanā, é redirecionado em direção ao alcance da consciência expandida, como pelos termos do posterior Kulārṇava Tantra (2.63): “O que é chamado de pecado, torna-se um mérito quando feito por um propósito superior”. Deste modo, a tradição Tântrica assegura que o desejo por si mesmo não é um problema tanto quanto o apego à crença de que o desejo deveria ser satisfeito e à crença de que a satisfação do desejo é o caminho para a felicidade. Esta visão errada surge em conexão com a ideia de que os sentimentos de felicidade são causados por ou dependentes dos estímulos que ajudam a engatilhá-los. Este não é demonstravelmente o caso e, portanto, o problema essencial é de ignorância e não de desejo.

Outra característica excepcional do Yoga clássico é sua doutrina fundamental de que o Self é alcançado por meio da cessação de todas as flutuações mental-emocionais (Yoga-sūtra 1.2). Nesta visão, os pensamentos, como estática de rádio, mascaram a pura, doce, simples melodia do Self interno e são, portanto, detritos mentais inúteis quando tenta-se realiza esse Self. Em rígido contraste, se formos identificar uma técnica como sendo o tema mais dominante e pervasivo do VBT, ela seria provavelmente a bhāvanā, um termo que abrange o ‘cultivo da atenção’, a ‘contemplação criativa’ e o ‘sentimento dentro do que é’. É uma versão da prática de bhāvanā, um construto-pensamento profundamente refinado (śuddha-vikalpa) deve ser mantido estável em consciência (awareness). Longe de obscurecer o estado de Self, isto permite que a mente relaxe e venha a repousar sobre a ideia nutritiva de que está em alinhamento com a verdadeira natureza da realidade até que ela se dissolva em um estado-sentimento puro correspondendo à verdade da ideia contemplada. Esta mudança marcante novamente indica a natureza revolucionária da perspectiva Tântrica. Os exemplo de bhāvanā são abundantes pelo texto. Nos versos de 63 a 65, o aspirante contempla seu corpo e o universo como a natureza da consciência alegre. No 109, ele contempla, “Já que eu tenho todos os atributos de Śiva, eu sou o mesmo que o Senhor mais elevado”. No verso 110, ele medita no pensamento (e busca atualizar a experiência correspondente): “as ondas-de-energia do universo têm surgido em suas várias formas de mim, Bhairava.” Essas contemplações criativas não são apenas uma inovação metodológica sobre a tradição anterior, mas também claramente afirmam uma diferença doutrinária: que é a não-dualidade sobre e contra a dualidade. A dualidade da tradição clássica anterior, de fato, não foi uma das diferenças entre a Consciência pura e única, mas uma distinção ontológica entre a Consciência e o mundo. Essa dualidade que o VBT negligencia alegremente, encoraja o aspirante a ver a Consciência Divina pulsando no mundo manifesto inteiro tanto quanto em seu mais profundo núcleo. Surpreendentemente, o VBT é um dos primeiros textos de práticas não-duais a aparecerem, além de exibir maturidade e sofisticação de pensamento, apesar de seu Sânscrito frequentemente simplista. Essa atitude não-dual culmina no dhāranā final, que confiantemente proclama que cognição e conhecido (o conhecimento e seu objeto, o observador e o que é visto, o ouvinte e o que é ouvido, etc) são únicos e o mesmo (v. 137).

Além disso, o VBT é uma dos primeiros textos a apresentar práticas de Kuṇḍalinī (veja os versos 28-31 e 35). Apesar do interesse generalizado em Kuṇḍalinī, ainda há pouco ou nenhum estudo de suas origens e dos primeiros usos do termo. Qualquer pessoa que tente fazer uma busca encontrará informação quase exclusivamente baseada em materais posteriores (pós-clássicos) e reinvenções modernas. (Por exemplo, O Yoga Kuṇḍalinī do Yogi Bhajan não tem nenhuma relação com nada que encontramos nos manuscritos Sânscritos). Devido ao declínio de interesse no estudo acadêmico da cultura convencional, temos literalmente dezenas de milhões de pessoas interessadas em algo que ainda não está bem entendido devido a uma total falta de estudos vigorosos sobre o assunto por alguém fluente tanto em Sânscrito quanto em Inglês.

Por fim, abaixo, temos uma classificação das categorias de práticas do VBT:

  • Respiração
  • Kuṇḍalinī
  • Dvādaśānta
  • Sentidos
  • Som e mantra
  • Vazio
  • Universo
  • Corpo
  • Coração/Centro
  • Prazer
  • Luz e Escuridão
  • Sono e Sonho
  • Prática com o corpo
  • Olhar
  • Equanimidade
  • Conhecimento/Insight
  • Sensações intensas e emoções
  • Aonde a mente vai
  • O “show mágico”
  • O Senhor supremo.
Esta é um resumo traduzido por Eanes T. Pereira. Caso utilize este texto em português por favor mencione a fonte.

Um comentário em “O Verdadeiro Vijñaana-Bhairava Pode, Por Favor, Levantar-se?”

  1. Boa tarde, saudações.
    Adorei a discussão sobre tal retórica. Gostaria de ler outros textos que aborde esta pauta.
    Gratidão pela disponibilidade e atenção.
    Em paz,
    Adriano

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