Uma crítica à meditação como remédio

Adaptações e comentários a partir do texto de W. S. Hickey sobre os problemas de se utilizar a meditação apenas como mais um remédio.

Nas últimas décadas temos assistido a “uma explosão” de pesquisas sobre meditação e seus efeitos na saúde humana. Essas pesquisas têm sido realizadas por profissionais de diversas áreas, tais como: medicina, psicologia, neurociência, psiquiatria, fisioterapia, etc. As técnicas de meditação abordadas são bastante variadas, desde técnicas de Raja-Yoga, passando por meditação transcendental, até o que está se popularizando como “Mindfulness” (Atenção Plena). Essa última técnica teve como um dos responsáveis por sua popularização o biólogo Jon Kabat-Zinn, criador da abordagem MBSR (Mindfulness Based Stress Reduction). Outro grupo responsável pela intensificação desses estudos são os pesquisadores associados com o Instituo Mind and Life.

Se procurarmos artigos contendo palavras-chave relacionadas com meditação em plataformas de publicações científicas encontraremos milhares de artigos publicados nos últimos anos tentando demonstrar a eficácia de técnicas de Yoga e meditação para problemas que variam desde miopia até cardiopatias. Por exemplo, uma busca realizada no dia de publicação deste texto pela ocorrência das palavras meditation ou mindfulness nos abstracts de artigos publicados nos últimos 5 anos retornou as seguintes quantidades de artigos para as plataformas abaixo:

Embora exista uma grande variedade de abordagens de meditação utilizadas nos experimentos descritos nos artigos, a MBSR tem se destacado como a mais utilizada. W. S. Hickey critica essa abordagem em alguns aspectos:

  • Meditação budista sem Budismo. Hickey afirma que há dois pressupostos problemáticas nesse aspecto. Primeiro, a prática fundamental do Budismo é a meditação. Segundo, as ideias ou práticas religiosas Budistas e Hinduistas são universais e transcendem culturas e contextos históricos.
  • A MBSR separa as práticas yóguicas e meditativas de seu contexto ético e moral.
  • A MBSR reforça a ideia de que a prática individual é o aspecto mais importante para o bem-estar pessoal.

A primeira crítica vai de encontro a um hábito comum no ocidente, o refinamento (no mau sentido). Vejamos o que ocorreu com o Yoga, por exemplo. O Yoga, originalmente, é uma técnica milenar de transformação e libertação espiritual. Segundo sua filosofia, as técnicas visam libertar o praticante do sofrimento e dos ciclos de renascimento. O Yoga tradicional de Patanjali é formado por oito membros, sendo um deles a prática de ásanas ou posturas físicas. Segundo a filosofia indiana, os ásanas fornecem um modo de permitir a ativação de centros de energia sutil e o despertar de energias espirituais latentes no corpo sutil do ser humano. Porém, um dos efeitos colaterais dos ásanas é flexibilidade e saúde física. O que algumas pessoas fazem? Confundem o efeito colateral com o objetivo real. Essa confusão pode ser proposital ou por engano. Não é um problema sério alguém praticar ásanas do Yoga com o único objetivo de saúde física. O problema é reduzir o Yoga a isso.

Problema semelhante ocorre com práticas de meditação. Algumas pessoas, numa tentativa forçosa de popularização, desassociam totalmente as práticas de meditação do Yoga e do Budismo de aspectos espirituais. A meditação está se tornando uma ginástica cerebral. Algo pior que pode ocorrer é praticar técnicas específicas de meditação, que só fazem sentido no contexto do Yoga e do Budismo, associadas com práticas de outros caminhos espirituais que não possuem ou aceitam conceitos como: renascimento, karma, devas, etc.

Outro fator muito importante que está se perdendo com a transformação da meditação em ginástica mental é a necessidade de uma comunidade de prática que possui objetivos comuns respaldados em preceitos éticos que fazem sentido para aquele contexto. Por exemplo, no Budismo há o princípio dos três refúgios: Buda, Dharma e Sanga. Sendo que a Sanga, ou comunidade, é uma peça fundamental para apoiar as pessoas que têm dificuldades para se libertar de maus hábitos ou vícios. Um fato relacionado ao conceito de comunidade é o grande sucesso da metodologia dos A.A. em que o viciado se apóia em uma comunidade com a qual pode contar e possui alguém mais experiente dentro da comunidade para servir de tutor. Podemos nos questionar como, numa sociedade movida pela grande quantidade de informações e pela consequente tentativa de autodidatismo em tudo, alguém poderia obter os reais frutos da meditação praticando-a isolado de uma comunidade e de modo autodidata?

Assim como muitas pessoas acham que Yoga é ásana, muitas pessoas acham que Budismo é meditação. Isso não é verdade. Tanto no Yoga quanto no Budismo existem preceitos éticos que devem ser seguidos se o praticante desejar avançar em seu caminho espiritual. No caso do Yoga, há os Yamas e Nyiamas.

Yamas:

  • Ahiṃsā: não-violência;
  • Satya: verdade;
  • Asteya: não roubar;
  • Brahmacharya: contenção sexual, refrear os excessos da sexualidade;
  • Aparigraha: não ser avaro.

Nyiamas:

  • Śauca: pureza;
  • Santoṣa: contentamento;
  • Tapas: práticas acéticas;
  • Svādhyāya: auto-estudo;
  • Īśvarapraṇidhāna: devoção a Ishvara.

Um dos principais ensinamentos budistas se refere à observação do Nobre Caminho Óctuplo:

  • Visão correta;
  • Intenção correta;
  • Fala correta;
  • Ação correta;
  • Meio de vida correto;
  • Esforço correto;
  • Atenção correta;
  • Concentração correta;

Não irei discorrer sobre Yamas/Niyamas e Nobre Caminho Óctuplo neste texto. Estou listando-os aqui apenas para que o leitor perceba que esses caminhos são completos e autocontidos. Não se restrigem a ásanas ou à meditação e, consequentemente, são capazes de afetar positivamente toda a vida do praticante.

Enfim, podemos encarar essa “corrida maluca” para se popularizar a meditação como uma prática secular pela perspectiva positiva de que quem a praticar poderá trazer frutos positivos para a sua vida e para a sua saúde. Esses resultados positivos para a saúde já estão suficientemente comprovados para os órgãos de saúde pública brasileiros, de modo que o SUS já permite e sugere a utilização de práticas que eles chamam coletivamente de terapias alternativas. No entanto, só alcançarão os reais objetivos da meditação aqueles que a praticarem dentro de um contexto específico, seguindo todas as prescrições milenares e se beneficiando da orientação de pessoas mais experientes que fazem parte de uma comunidade que possui os mesmos objetivos de desenvolvimento espiritual.

Mesmo os melhores meditadores têm feridas para curar

Jack Kornfield

(Tradução do inglês: Eanes T. Pereira)

Para a maioria das pessoas, a prática “não serve”. No melhor caso, é uma peça importante de um caminho de abertura e despertar.

Na vida espiritual, eu vejo grande importância em trazer atenção para nosso lado de sombra, aqueles aspectos de nós mesmos e de nossa prática dos quais temos permanecido inconscientes. Como um professor da prática budista de atenção plena conhecida como vipassana, eu naturalmente tenho uma firme fé no valor da meditação. Retiros intensivos podem nos ajudar a dissolver nossa ilusão de separatividade e podem fazer surgir insights admiráveis e certos tipos de curas profundas.

Mesmo assim, a prática de meditação tem suas limitações. Falando sobre essas limitações, eu quero falar não apenas teoricamente, mas diretamente de minha própria experiência e do meu coração.

Algumas pessoas chegam à meditação após trabalharem  com a psicoterapia tradicional. Embora elas achem algum valor na terapia, suas limitações a levam a buscar uma prática espiritual. Para mim, foi o contrário. Enquanto me beneficiei enormemente do treinamento oferecido nos monastérios Thai e Burmês onde pratiquei, notei duas coisas impressionantes. Primeiro, havia areas importantes de dificuldade em minha vida, tais como solidão, relacionamentos íntimos, trabalho, feridas da infância e padrões de medo que mesmo a meditação muito profunda não tocava. Segundo, dentre várias dúzias de monges ocidentais (e grandes quantidades de meditadores asiáticos) que eu conheci durante meu período na Ásia, com poucas notáveis excessões, a maioria não era ajudada pela meditação em grandes áreas de suas vidas. Muitos eram profundamente magoados, neuróticos, assustados, rancorosos e, frequentemente, usavam a prática espiritual para esconder e evitar as suas partes problemáticas.

Quando retornei para o ocidente para estudar psicologia clínica e então começar a ensinar meditação, observei um fenômeno similar. Pelo menos metade dos alunos que viam para retiros de três meses não podia simplesmente executar práticas de “atenção básica” por que eles estavam guardando uma grande quantidade de rancor não resolvido, medo, feridas e negócios não resolvidos do passado. Eu também tive a oportunidade de observar grupos de meditadores de sucesso – incluindo estudantes experientes do Zen e do Budismo Tibetano – que tinham desenvolvido samadhi forte e insight profundo na impermanência e na ausência de ego. Mesmo após muitos retiros intensivos, a maioria dos meditadores continuava a experimentar grandes dificuldades e areas significativas de apego e inconsciência em suas vidas, incluindo medo, dificuldades no trabalho, mágoas de relacionamentos e corações fechados. Eles permaneciam perguntando como viver o Dharma e continuavam retornando para retiros de meditação procurando por ajuda e cura. Mas a própria prática de sentar com sua ênfase na concentração e desapego, frequentemente fornecia um meio de esconder, um meio de, na verdade, separar a mente das areas difíceis do coração e do corpo.

Esses problemas também existem para a maioria dos professores de vipassana. Muitos de nós temos levado vidas muito desintegradas e mesmo após práticas profundas e experiências iniciais de “iluminação”, nossa prática sentada ainda deixa areas importantes de nosso ser inconscientes, medrosas ou desconectadas. Muitos professores americanos de vipassana estão agora, tem estado recentemente, em psicoterapia para lidar com esses problemas.

Também deveria ser notado que a maioria dos mais de 20 maiores centros de prática Zen, Tibetana, Hindu e vipassana na América tem observado importantes perturbações, centradas nos próprios professores (tanto asiáticos quanto ocidentais), relacionadas com poder, sexo, honestidade e uso de intoxicantes. Algo está pedindo para ser questionado aqui. Se nós queremos encontrar a liberação verdadeira e a compaixão o que podemos aprender disso?

Algumas conclusões úteis de nossa prática

  1. Para muitas pessoas, a prática de meditação não funciona. No melhor caso, é uma peça importante de um caminho complexo de abertura e despertar. Eu costumava acreditar que a meditação levaria a verdades mais elevadas e universais e a psicologia, a personalidade e nossos “pequenos dramas” eram um reino inferior e separado. Eu queria que funcionasse dessa maneira, mas a experiência e a natureza não-dual da realidade não deu suporte a isso. Se queremos acabar o sofrimento e alcançar a liberdade final, nós não podemos manter esses dois níveis de nossas vidas separadas.
  2. Os vários compartimentos de nossas mentes e corpos são apenas semi-permeáveis à consciência (awareness). A ciência de alguns aspectos não leva automaticamente a outro aspecto, especialmente quando nosso medo e ferimentos são profundos. Isso é verdade para todos nós, professores e alunos. Então, nós frequentemente encontramos meditadores que são profundamente cientes da respiração e do corpo mas são quase totalmente inconscientes dos sentimentos e outros que entendem a mente mas não tem sabedoria na relação com o corpo. A atenção plena funciona apenas quando desejamos dirigir nossa atenção para todas as areas de nosso sofrimento. Isso não quer dizer ser pego em nossas estórias pessoais, como muitas pessoas temem, mas aprender como resolvê-las de modo que possamos realmente nos libertar dos grandes blocos dolorosos de nosso passado. Tal trabalho de cura é frequentemente melhor realizado em um relacionamento terapêutico com outra pessoa.
  3. A meditação e a prática espiritual podem facilmente ser usadas para suprimir e evitar sentir ou escapar de areas difíceis de nossas vidas. Nossas mágoas são difíceis de tocar. Muitas pessoas resistem às raízes pessoais e psicológicas de nosso sofrimento; há tanta dor na experiência real de nossos corpos, nossas estórias pessoais, nossas limitações. Pode ser até mesmo mais difícil do que encarar o sofrimento universal que surge durante a prática sentada. Tememos o pessoal e sua mágoa por que não aprendemos como ele pode ser servir como nossa prática e como pode abrir nossos corações. Precisamos olhar para nossa vida inteira e perguntar a nós mesmos. “Onde estou desperto e o que estou evitando? Eu uso minha prática para esconder? Em quais áreas estou consciente e onde estou com medo, preso ou não livre?”
  4. Há muitas áreas de crescimento (mágoa e outras coisas mal resolvidas, comunicação e amadurecimento de relacionamentos, sexualidade e intimidade, carreira e outros problemas, certos medos e fobias, feridas antigas e mais) onde uma boa terapia ocidental é por inteiro mais rápida e mais eficiente do que a meditação. Esses aspectos cruciais de nosso ser não pode apenas ser eliminado como “coisas de personalidade”. Freud disse que queria ajudar as pessoas a amar e trabalhar. Se não podemos amar bem e dar trabalho significativo à terra, então para que servirá nossa prática espiritual? A meditação pode ajudar nessas áreas. Mas se, após sentar por um tempo, você descobrir que ainda tem trabalho a fazer, encontre um bom terapeuta ou algum outro meio para lidar efetivamente com esses problemas. De fato, há muitos terapeutas mediocres e muitos tipos limitados de terapia. Assim como na meditação, você deveria procurar o melhor. Além das psicoterapias tradicionais dos anos 40 e 50, muitos novos terapeutas tem se desenvolvido como uma base espiritual forte tal como psicossíntese. O trabalho de respiração Reichiana, brincadeira com areia e uma grande série de terapias transpessoais. A melhor terapia, como a melhor prática de meditação, usa a consciência para curar o coração e está não está muito preocupada com nossas estórias, assim como medo e apego e sua liberação e nem como trazer atenção para areas de delusão, avidez e sofrimento desnecessário. Alguém pode, às vezes, encontrar as realizações mais profundas de ausência de ego e não-apego através de alguns métodos de psicologia transpessoal.
  5. Isso significa que deveríamos trocar a meditação por psicoterapia? De modo algum. A terapia também não é a solução. A consciência é! E a consciência cresce em espiral. Se você busca liberdade, a coisa mais importante que eu posso te dizer é que a prática espiritual sempre se desenvolve em ciclos. Há períodos interiores quando o silêncio é necessário, seguido de outros períodos de vida e integração das realizações silenciosas, assim como períodos para obter ajuda de um relacionamento profundo e terapêutico com outra pessoa. Essas são fases igualmente importantes de prática. Não é uma questão de primeiro desenvolver um “self” e então seguir sem ele. Mas ambos vão juntos o tempo todo. Qualquer período de prática pode incluir samadhi e quietude, seguidos por novos níveis de experimentar feridas e história familiar, seguido por grandes períodos de deixar passar, seguido por mais problemas pessoais. É possível trabalhar com todos os níveis no contexto de uma prática espiritual. O que é necessário é a coragem para encarar a totalidade do que surge. Apenas assim podemos encontrar a cura profunda que buscamos – para nós mesmos e para nosso planeta. Em resumo, temos que expandir nossa noção de prática para incluir toda a vida. Como as figuras Zen de pastoreio de vacas, a jornada espiritual nos leva fundo na floresta e nos trás de volta para o mercado de novo e de novo, até que sejamos capazes de encontrar a compaixão e a certeza da liberação do coração em todos os reinos.