Sutra 15 – Pada I – Yoga Sutra de Patanjali
Tradução do sutra 15 do pada I do Yoga Sutra de Patanjali. Esse sutra define vayragya.
दृष्टानुश्रविकविषयवितृष्णस्य वशीकारसञ्ज्ञा वैराग्यम्
dṛṣṭānuśravikaviṣayavitṛṣṇasya vaśīkārasañjñā vairāgyam
दृष्टा => ppp => visto, percebido, notado
अनुश्रविक => adj. => conhecido através/dos shastras
विषय => m => domínio, região, território, objeto dos sentidos
वितृष्णस्य => m/n6s => do livre de desejo
वशीकार => m => superação, conquista, dominação
सञ्ज्ञा => f => concordância, harmonia
वैराग्यम् => n => não apego
Sujeito da frase: वैराग्यम्
Verbo: implícito => verbo Ser
Tradução
[O] não apego é [a] harmonia da conquista daquele que é livre de desejos pelos objetos dos sentidos vistos [ou] conhecidos através dos shastras.
Espiritualidade, à la carte ou self-service?
O risco de querermos inventar nosso caminho espiritual.
Houve um tempo em que alguém que quisesse aprender sobre Yoga (ásanas, ascese, pranayama, etc), meditação, Vedanta, Rituais ou qualquer assunto relacionado à espiritualidade deveria procurar por alguém que reconhecidamente era um professor daquele assunto. Veja que enfatizei a palavra reconhecidamente. O reconhecimento de que alguém era um professor de assuntos espirituais vinha de pelo menos duas origens: (i) de uma linhagem de mestres-díscipulos da qual o professor reconhecido fazia parte; (ii) de uma comunidade que estava em volta daquele professor, estudava com, punha em prática seus ensinamentos e os validava em sua vida.
Como muitos desses professores reconhecidos não tinha o ensino do autoconhecimento como uma profissão, mas como parte da sua vida, eles não divulgavam aos quatro ventos que estavam ensinando esses assuntos e que estavam à procura de alunos. Então, pra começo de conversa era meio complicado de achar alguns professores. Em segundo lugar, não bastava chegar ao professor e dizer que queria estudar com ele, você deveria mostrar-se merecedor do conhecimento.
O tempo passou, algumas tradições morreram de morte natural ou foram atacadas por outras tradições e destruídas. Alguns professores, por medo de que o conhecimento morresse com eles pediram para seguidores anotarem seus ensinamentos. Outros professores, simplesmente escreveram os ensinamentos ou comentários sobre os ensinamentos. Além disso, as tecnologias evoluíram permitindo que os textos fossem reproduzidos digitalmente favorecendo a propagação e divulgação dos assuntos espirituais.
Com a popularização da Internet, ficou muito fácil de encontrar textos sobre praticamente qualquer assunto “dito espiritual”. Melhor/Pior que isso, ficou muito fácil acessar “ensinamentos” de “mestres” espirituais via vídeos e áudios. Veja a quantidade de aspas que usei nas sentenças anteriores. Só por que os textos estão disponíveis facilmente não quer dizer que sua leitura ou estudo serão benéficos para qualquer pessoa em qualquer estágio de sua vida. Outro fator complicador é que os textos tradicionais estão escritos em sânscrito. A maioria deles não tem tradução. Por mais que os acadêmicos se esforcem para criar traduções “neutras” sem viés de linhagem, isso não é possível (na minha humilde opinião). A questão da tradução é ainda mais grave, devido a existirem muitas traduções péssimas de vários textos em sânscrito.
É evidente que o primeiro passo de qualquer pessoa hoje ao buscar conhecimentos sobre espiritualidade é fazer uma pesquisa na Internet. Essa possibilidade é uma bênção, não há como negar. Também é evidente que as primeiras tradições com as quais nos conectamos o fazemos por afinidade. (Uma amiga anarquista foi quem me fez perceber isso). E essa conexão por afinidade é similar a escolha de uma comida em um cardápio. Ou seja, à la carte. Não há outra forma de ser, exceto quando você não tem escolha. Mas isso não quer dizer que todos os caminhos são iguais. Nesse caso, devo admitir que Raul Seixas estava errado quando falava com seu amigo Pedro. Todos os caminhos não são iguais, por que cada tradição tem objetivos específicos e para objetivos específicos há métodos específicos. Você não deveria usar um martelo para pregar um parafuso.
Um problema comum na prática de meditação, por exemplo, é alguns praticantes de aplicativos praticarem meditações de tradições transcendentalistas cujo foco principal é o desenvolvimento espiritual de renunciantes (monges, swamis, etc) quando na verdade estão buscando algo para viverem melhor suas vidas e não para abandonar a vida prática. Isso pode dar um nó na cabeça, principalmente quando ocorrem efeitos que são considerados adversos para um pai ou mãe de família mas que para um monge ou swami é o efeito esperado. Se você se considera autodidata e não tem a quem recorrer para conversar sobre os efeitos da sua prática de meditação, o que vai fazer? Provavelmente, seu aplicativo não tem inteligência artificial para ajudar nisso.
Problemas podem surgir de pelo menos duas formas diferentes: (i) quando escolho meu caminho espiritual à la carte, mas invento minha sadhana; (ii) quando escolho práticas de caminhos espirituais diversos (self-service) e invento minha sadhana. Observe que em ambas as situações existe o “inventar a sadhana”. Sadhana é uma prática espiritual, desenvolvida dentro de tradições que tem objetivos específicos dentro daquela tradição. Quando um leigo, do alto de sua ignorância, decide escolher o mantra do mês no instagram para repetir antes de ir à missa, temos um problema. Não com a missa, mas com a mistura de sadhanas. Para que um caminho espiritual funcione adequadamente deve haver um alinhamento entre visão, prática (sadhana) e resultado.
Mesmo vivendo em uma socieade onde “o que eu acho” é mais importante do que a verdade/realidade, temos que perceber que, se você não sabe para onde está indo, pelo menos duas coisas podem acontecer: ou você não chegará a lugar algum, ou onde quer que você chegue você ficará satisfeito. Se você está caminhando na orla de João Pessoa e um amigo passa e pergunta onde você está indo e você diz estou indo à Roma. Ele vai rir de você e dizer que por ali você não vai chegar. Mas você poderá ficar chateado e dizer “eu seu o que estou sentindo, estou na direção certa”. Devemos sempre ter em mente a seguinte pergunta: “e se eu estiver errado e não souber?” É para ajudar a responder essa pergunta que existem os professores. Outro problema agravado pela popularização da Internet foi o aumento na quantidade de autodidatas. Pessoas que dizem que aprenderam a fazer algo sozinhas. Dizer que aprendeu a fazer algo sozinho é meio falacioso. Pois, se você leu algum texto ou ouviu alguém falando sobre o assunto, você não aprendeu sozinho. Mesmo que tenha sido uma revelação de algum ser sobrenatural, esse ser foi quem te falou.
Quando estamos falando de autoconhecimento, estamos falando em lidar com o ego. O ego é um bichinho muito traiçoeiro e esperto. É praticamente impossível você lidar com ele sozinho ou sem a ajuda de alguém mais experiente. Vejamos por exemplo, a prática de mantras. Nos tempos remotos, um mantra era passado para um aluno por um professor que conhecia aquele aluno, conhecia um pouco da personalidade dele, das dificuldades que ele tinha, dos pontos fortes e fracos. O professor ensinava um mantra que sabia que iria auxiliar o aluno em sua jornada. Mais que isso, o professor tinha praticado o mantra milhares de vezes.
Atualmente, tem muita gente ensinando coisas que nunca praticaram, ou por que fizeram um curso no domingo e na segunda já vai ensinar, ou por que leu um livro o mês passado e já que ensinar isso agora, sem nem ter integrado aquilo em sua vida. Hoje em dia, se você quer ganhar dinheiro fácil (como se isso fosse honestamente possível) você vai num site de vídeos online e digita “mantra para a prosperidade”. Aí você executa simultaneamente o self-service (você quer um mantra para uma “fome” específica) e o à la carte (há vários artistas disponíveis cantando o mantra!).
As sadhanas foram criadas dentro de tradições e foram validadas pela prática de muitas pessoas durante séculos ou milênios. Por mais iluminado que você pense que é, dificilmente vai inventar algo novo em termos de abordagens espirituais e isso vai funcionar sem que seja aprimorado por gerações de praticantes. O ponto principal que devemos entender é que existe um método a ser seguido para que a sadhana funcione. Se você faz várias etapas de uma sadhana, mas do modo como lhe vem à cabeça, dificilmente você vai alcançar o objetivo. E não me venha dizer que o que vale é a intenção. Se o que vale é a intenção, então você não precisa praticar sadhana nenhuma, apenas mentalize sua intenção e veja onde você vai chegar.
Evento Online
Yoga: Um Mergulho na Natureza do Ser
Datas: 13 e 14 de ferevereiro de 2021
Programação dos dois dias:
05:30 – 6:00 => gaṇeśa pūjā
06:00 – 07:30 => Hatha Yoga
09:00 – 11:00 => Ensinamentos e Meditação
14:30 – 16:30 => Ensinamentos e Meditação
16:30 – 18:00 => Ashtanga Yoga
19:00 – 20:00 => Roda de conversa, perguntas e respostas e partilha.
Professores:
Eanes Torres (Ciência Contemplativa)
Edson Carneiro (Yoga Harmonizar)
Suelaine (Ashtanga Yoga CG)
Valor: 108 reais
Contato via whatsapp 83 9 8864 9389
Em breve, mais informações.
Yoga, Engajamento Social e Política
Por mais ilusório que você pense que o mundo é, para aqueles que estão sofrendo o sofrimento é “real”.
Como tenho notado muito barulho em torno do tema desse texto, resolvi escrever um pouco sobre o assunto. Muitas pessoas envolvidas com Yoga podem se questionar sobre até que ponto um Yogi deveria se envolver com ativismos. Não existe uma resposta final e objetiva para essa pergunta, mas vou apontar alguns aspectos que tenho observado.
Se formos considerar as tradições que se apóiam principalmente no Yoga Sutra de Patanjali, na Bhagavad Gita e em textos chamados Tantras, dificilmente será encontrada alguma menção explícita de dever em relação a engajamento em ativismos. Vejamos, por exemplo, o Yoga Sutra trata especificamente de uma forma de Yoga transcendentalista dirigida para renunciantes e cujo objetivo final é o isolamento. Isolamento, em termos espirituais isolamento da Prakrti e em termos materiais isolamento social. Então, por que alguém iria esperar alguma sugestão de envolvimento social vinda do Yoga Sutra? Seria até injusto com o texto esperar isso.
Algumas pessoas podem argumentar em torno da Bhagavad Gita para falar de uma suposta obrigação de envolvimento político. Provavelmente, essa pessoa não conhece muito bem o Mahabharata, que é o texto ao qual a Bhagavad Gita pertence. No Mahabharata é evidente que todo o confronto de Pandavas e Kauravas é motivo principalmente por questões pessoais entre os familiares. Quando os Pandavas decidem lutar não é para “salvar o mundo da corrupção Kaurava”, mas sim por questões de Dharma Pessoal.
Talvez um alento para aqueles de mentalidade ativista venha do que se conhece sobre o modo de vida das comunidades tântricas, especialmente aquelas não-dualistas. Sabe-se que as comunidades tântricas não-dualistas eram bastante radicais, em termos sociais, para seu tempo por dois aspectos principais: não haver distinção de castas e não haver distinção de gênero em termos hierárquicos. Alguns professores mencionam que, naquelas comunidades, a simples menção a algum tipo de hierarquia por casta ou gênero seria motivo para expulsão da comunidade. No entanto, o que poucos percebem é que essas regras igualitárias eram consideradas apenas dentro da comunidade espiritual, não havia nenhum esforço ou tentativa de impor essa “igualdade” na comunidade externa. Esse igualitarismo na comunidade espiritual decorria do entendimento não-dualista de que todos somos a mesma consciência.
Algumas pessoas ainda tentam trazer a imagem das divindades femininas como símbolos de feminismo. Essa uma tentativa perigosa, sobre a qual sugiro a leitura deste texto. No texto do link, a autora levanta mais questionamentos antes de responder se as deusas indianas são feministas. Uma pergunta que ela faz é: Quem pergunta sobre feminismo? Por que pergunta? Com qual intenção? Sugiro que o leitor investigue um pouco sobre a influência da política nacionalista indiana na propagação dos yogásanas, por exemplo. Será que não estariam tentando fazer algo parecido com as devis? Se olharmos para o texto Devi Mahatmya, veremos que as deusas surgem a partir da energia vital (ou representam a energia vital) dos deuses. E elas veem para resolver questões “pessoais” dos devas que eles sozinhos não estavam sendo capazes de resolver. É claro que estou apresentando aqui uma versão bem literal de interpretação sem muito misticismo ou psicologização (o que tem sido muito comum recentemente).
Porém, as ideias apresentadas nos parágrafos anteriores não servem como argumento para sugerir que um Yogi não deveria se envolver com lutas sociais ou políticas. Na verdade, nesse aspecto creio que não existam deveres ou obrigações. Mas se pensarmos em termos de bom senso, faz sentido que uma pessoa que trilha o caminho espiritual há algum tempo fique indignado diante de situações injustas e queira atuar de alguma forma para a construção de um mundo melhor. O que não faz sentido é querer argumentar a favor de ativismos utilizando textos que são claramente focados em renúncia radical ou em dharma pessoal. Mas se você sabe que seu dharma pessoal é se envolver com tais questões, siga em frente.
Por mais ilusório que você pense que o mundo é, para aqueles que estão sofrendo o sofrimento é “real”.
A História de Sulabha: Discussão de Gênero no Mahabharata
A história de Sulabha ocorre no Mahabharata, ela foi uma sábia que venceu um debate contra o rei Janaka sobre o fato de que não existe diferença entre homens e mulheres segundo a filosofia indiana. Esse texto é uma tradução resumida to artigo “The Self Is Not Gendered: Sulabha’s Debate with King Janaka” de Ruth Vanita. Trechos em itálico são para indicar tradução literal.
Textos antigos são complicados de interpretar devido a vários motivos, por exemplo: problemas de tradução, não-entendimento do contexto em que foram escritos e uso mal-intencionado de trechos específicos. Por exemplo, no texto Manusmrti (conhecido por ser considerado um dos textos legais mais antigos da humanidade) podemos encontrar dois trechos aparentemente divergentes:
- … os deuses residem onde as mulheres são honradas;
- … uma mulher nunca deveria ser independente, mas deveria estar sob a proteção do pai durante a infância, do marido durante a idade adulta e do filho durante a velhice.
Ruth Vanita argumenta que havia um debate em andamento sobre as mulheres nos textos indianos antigos e que a figura de uma mulher solteira como renunciante e intelectual desafia o “ditado” de que uma mulher deveria estar sempre sob a proteção de um homem. Vanita afirma também que as feministas tem dado muito mais atenção a aspectos irados das devis ou a mulheres que sofreram nas histórias do que a histórias de devis como Saraswati (devi da fala, da aprendizagem e das artes) que aparece independente e sem consorte. Outra devi que não tem consorte é Vak, mencionada em um dos textos mais antigos, o Rigveda.
Sulabha é uma asceta kshatriya. Assim como Janaka, ela aparece em várias histórias (e.g., Saulabha Shakha do Rigveda Samhita, Kaushitaki Brahmana e Shanti Parva do Mahabharata) e representa a acadêmica feminina por excelência.
O debate mencionado aqui ocorre no Shanti Parva do Mahabharata e termina com o silêncio do Rei Janaka. Embora esse debate trate da relativa superioridade da ação e da renúncia como caminhos de libertação, ele também é um debate sobre gênero, especificamente: se uma mulher pode ser autônoma, pode ser igual ou superior a um homem intelectualmente e pode atingir a libertação independentemente. O argumento básico usado por Sulabha é que Atman tem gênero neutro em sânscrito (nomes em sânscrito podem ter um de três gêneros: masculino, feminino ou neutro).
A história de Sulabha surge como resposta a uma pergunta de Yuddhishthira para Bhishma. A pergunta foi: é possível obter a libertação sem abandonar a vida doméstica?
Sulabha era uma renunciante andarilha que soube da fama do rei Janaka e decidiu testá-lo. Se apresentou no palácio e depois de algumas conversas entrou em debate. Um dos argumentos do rei Janaka era de que ele era superior a Sulabha por ela ser mulher. O rei Janaka tenta demonstrar seu argumento apelando para noções convencionais sobre papéis de gêneros. Seu tom de bullying e sua atitudade masculinista para com Sulabha parecem bastante inapropriados para uma pessoa que clama ser desapegada do mundo e portanto de preconceitos sociais. O rei Janaka argumenta que por ela ser mulher, bonita e delicada seria incapaz de superar seus desejos por prazeres sexuais e sensuais.
Dentre os argumentos de Sulabha destacam-se:
- Entender a si mesmo como diferente dos outros seres é falta de sabedoria;
- Como a identidade está em fluxo, ela não pode ser fixada ou possuída. Esse argumento demonstra que a diferenças sexual não é uma diferença essencial;
- Sulabha declara que seu corpo é diferente do corpo de Janaka mas não há diferença entre seu Atman e o Atman dele ou o Atman de qualquer outra pessoa;
A vitória de Sulabha no debate justifica suas próprias escolhas na vida (não casar, vagar pelo mundo sozinha, buscar libertação pelo mesmo caminho que os homens) e sua ações (entrar em debate público com um homem famoso). Quando focamos nos debates dinâmicos em relação a gênero que floresceram nos textos indianos antigos ajudamos a combater o estereótipo desses textos como monoliticamente justificando a subordinação das mulheres ou monoliticamente honrando os homens.
Propriedades do Fluxo Mental – Aflições mentais segundo o Yoga.
Breve conversa sobre as “cores” dos pensamentos, ou propriedades do fluxo mental segundo o Yoga.
Yoga, Pensamentos e Condicionamentos – Vikalpas e Samskaras
Breve conversa sobre Yoga, pensamentos, condicionamentos, vícios e hábitos.
Você já esteve em Yoga e (provavelmente) não sabe
Conversa sobre estados de Yoga.
Vida de Yoga
Breve conversa sobre Yoga.