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Níveis de Libertação Segundo a Filosofia do Tantra Não-Dual Shaiva
Princípios Básicos do Tantra Shaiva – 1
A palavra shaiva é empregada para se referir aos praticantes de um conjunto de técnicas de yoga, rituais, meditação e ascetismo, bem como conhecimentos teológicos, que se acredita terem sido ensinadas pelo deva Shiva. Mas é incorreto categorizar um Shaiva apenas como sendo alguém que é devoto de Shiva, pois um Shaiva pode ser devoto da Devi. O termo tantra pode denotar várias coisas, por exemplo, segundo o dicionário Monier-Williams: a parte principal ou essencial, ponto principal, traço característico, modelo, tipo, sistema, estrutura. Mas neste contexto, Tantra refere-se às escrituras Shaiva. Muitas vezes os textos tântricos também são chamados de Ágamas. Portanto, quem segue os ensinamentos dos Tantras pode ser considerado Tântrico. (Obs.: quando alguém vier falar sobre coisas tântricas pra você, pode questionar em qual escritura tântrica aquilo está escrito. Caso a pessoa não tenha uma boa referência, pode ser uma evidência de que o que ela está falando não é tântrico do ponto de vista formal. Evidentemente, existem aberrações sendo propagadas como sendo tantra e esse é um modo bem simples de checar a procedência.)
Um fator que diferencia o Tantra de outos caminhos espirituais é o fato de que ele é uma tradição iniciática. Isso quer dizer que, tradicionalmente, para se ter acesso completo ao escopo de práticas e filosofia é necessário receber iniciação de um mestre da linhagem. Um fator esóterico associado à iniciação é o fato de que tradicionalmente a iniciação funciona como uma cerimônia de purificação dos efeitos de karmas anteriores.
Historicamente, pode-se dizer que o Tantra Shaiva passou por um processo de domesticação em que no início os praticantes eram predominantemente ascetas e posteriormente começaram a surgir praticantes donos de casa. Grande parte dos textos tântricos conhecidos e estudados foram preservados na região da Caxemira ao norte da Índia. Esse é o principal motivo pelo qual algumas pessoas ainda se referem ao Tantra Shaiva como sendo Tantra da Caxemira. Mas dizer que o Tantra Shaiva é Caxemire é incorreto, visto que o Tantra Shaiva floresceu em outras regiões como Nepal e Sul da Índia, especialmente após as invasões e dominação mulçumana. Durante a dominação muçulmana na Caxemira, vários mestres foram perseguidos e mortos.
Os ensinamentos de Shiva no Tantra Shaiva podem ser agrupados em dois grandes grupos: atimarga e mantramarga. Sendo o Atimarga uma linhagem ascética e o Mantramarga uma linhagem “doméstica”. Como o Mantramarga é uma linhagem que é praticada por pessoas que tem trabalho, família e ocupações práticas diferentes de práticas espirituais, o caminho Mantramarga promete, além da libertação, siddhis e desfrute de prazeres. O Atimarga possui três grandes divisões: os Kapálikas, os Pashupatas e os Lákulas.
Em geral, pode-se dizer que em algumas práticas Shaivas os devotos buscam “imitar” alguns comportamentos de Shiva. Por exemplo, os Kapálikas provavelmente possuem esse nome devido a perambularem segurando um crânio humano (kapala em sânscrito). Isso seria a imitação do comportamento de Shiva quando ele teve de realizar austeridades carregando a cabeça de Brahmá que ele havia cortado. Isso seria uma punição por ter “matado” um brahmane.
O termo Pashupata refere-se ao senhor das criaturas/feras (do sânscrito: pashu = fera/besta, pati = senhor). Para os pashupatas, os seres deste mundo vivem aprisionados em ciclos de desejos e aversões devido à ignorância. O processo de libertação seria a busca por unir-se (Yoga) ao senhor das criaturas e consequentemente libertar-se das amarras. Uma imagem muito conhecida que algumas pessoas conectam com Shiva como senhor das criaturas é um artefato arqueológico encontrado na região de Harapa.
Tradução Maha Lakshmi Ashtakam
Tradução – Virupakshasika Capítulo 2 Verso 9
Tradução do verso 2.9 e do bhashya deste verso feito por Vidyacakravartin. Tradução baseada no texto de David Peter Lawrence.
Esta tradução tomou como base a tradução disponível no livro The Teachings of the Odd-Eyed One: A Study and Translation of the Virupaksapancasika, with the Commentary of Vidyacakravartin . Em vários aspectos a tradução que eu estou disponibilizando aqui difere da apresentada no livro. Provavelmente, pela falta de experiência minha em traduções do sânscrito. A minha principal intenção é apontar o significado das palavras que compõem o verso e o Bhashya e em alguns casos apontar aspectos gramaticais.
प्रत्यवमर्शात्मासौ चितिः स्वरसवाहिनी परा वाग् या । आद्यन्तप्रत्याहृतवर्णगणा सत्यहन्ता सा ॥९॥
pratyavamarśātmāsau citiḥ svarasavāhinī parā vāg yā । ādyantapratyāhṛtavarṇagaṇā satyahantā sā ॥9॥
Essa (असौ) consciência [चितिः] [é] [a] natureza (आत्मा) da deliberação sobre si (प्रत्यवमर्श), [é] a fala [वाक्] suprema [परा], fluindo [वाहिनी] em sua própria essência (स्वरस), que (या) [está] contida (प्रत्याहृत) no grupo (गणा) de fonemas (वर्ण) do primeiro ao último. Esta (सा) [é] em realidade (सति) a subjetividade/eu-dade (अहन्ता).
Detalhes da tradução do verso
प्रत्यवमर्शात्मासौ = ( प्रत्यवमर्श आत्मा TP6) असौ
प्रत्यवमर्श = reflexão; contemplação, deliberação
आत्मा = ātmā: m1s: ātman = essence, nature, character
असौ = asau: f1s: adas = aquela, essa
चितिः = citis: f1s: citi = consciência, mente, intelecto
स्वरसवाहिनी = ( स्वरस वाहिनी TP7) = fluindo em sua própria essência
स्वरस = essência própria
वाहिनी = vāhinī: f1s: vāhin = fluxo, fluindo
परा = parA = suprema
वाग् = वाक् => fala
या = pronome relativo feminino nominativo singular = que, quem
आद्यन्तप्रत्याहृतवर्णगणा = आद्यन्त प्रत्याहृत वर्ण गणा
आद्यन्त = primeiro e último
प्रत्याहृत = contido
वर्ण = letra, fonema
गणा = f1s: gaṇa = grupo
सत्यहन्ता = सति अहन्ता =
सति = sati: m7s: sat = em realidade, na verdade
अहन्ता = f1s = estado de ser eu, eu-dade, subjetividade
सा = pron. demonstrativo f1s = esta
Bhashya
प्रत्यवमर्शात्मा विमर्शस्वभावा । असौ सर्वस्यैव स्वानुभवसिद्वत्वाद् असावित्यध्यक्षतया निर्देष्टुमुचिता । चितिः विगलितचेत्योपरागा चेतनस्य स्वरूपेणावस्थितिः । स्वरसवाहिनी निरोधकाभावादनिशं स्फुरद्रूपा । सा विमर्शमयत्वाद् वाक् । तत्रापि स्वरूपज्योतिष्ट्वेनैव प्रकाशनात् स्वरूपव्यतिरिक्तपस्यन्त्यादिरूपा नेयम् , अपि तु परैव, यदागमः – स्वरूपज्योतिरेवान्तः सूक्ष्मा वागनपायिनी इति । शुद्धवाग्रूपत्वाद् येयं वर्णात्मिका , सा प्रत्याहारयुक्त्या गृहीताभ्यामकारहकाराब्यामहन्तेति निरुच्यते , न पुनरहामिति प्रतियमानतयैवेयमहन्ता
Essa (असौ) [é] [a] natureza (आत्मा) da deliberação sobre si (प्रत्यवमर्श) significa [que tem] a natureza da deliberação. Essa (असौ) [significa] [a] agradável definição pelo perceptível devido a ter realizado o entendimento de si própria e portanto de tudo. Consciência (चितिः) significa dissolvida, [o] desejo de fazer brilhar e estabelecida pela própria natureza da consciência. A afirmação “ fluindo [वाहिनी] em sua própria essência (स्वरस)” significa [a] forma da existência do obstrutor [que] vibra incessantemente. Esta (सा) significa [a] fala [é] constituída por introspecção.
Portanto, também nesse caso, pelo estado de ser a dispersão do brilho da própria natureza a partir do iluminante, [ela é a] primeira aparência [para os] que enxergam além da própria natureza. E, também, não [é] esta então suprema quando se afastando – [a] luz da própria forma portanto [é o] fim sutil inseparável da fala.
Esta que devido à fala pura [é] composta de fonemas, ela pela união na dissolução é terminada por ha [e] entendida por A [e] HA, não é expressa, nem [é] novamente “Eu”. Então esta subjetividade [é] pacificada por restaurar(-se)
Detalhes da tradução
प्रत्यवमर्शात्मा विमर्शस्वभावा ।
प्रत्यवमर्शात्मा significa a natureza da deliberação
प्रत्यवमर्शात्मा is विमर्शस्वभावा =
विमर्शस्वभावा = विमर्श स्वभावा TP6 = [a] natureza da deliberação
विमर्श = reflexão, consideração, deliberação
स्वभावा = f1s = natureza, condição própria, estado de ser
असौ सर्वस्यैव स्वानुभवसिद्वत्वाद् असावित्यध्यक्षतया निर्देष्टुमुचिता ।
असौ = सर्वस्यैव स्वानुभवसिद्वत्वाद् असावित्यध्यक्षतया निर्देष्टुमुचिता = essa [significa] devido a ter realizado o entendimento de si própria e portanto de tudo, [a] agradável definição pelo perceptível.
सर्वस्यैव = सर्वस्य एव = portanto de todos/tudo
स्वानुभवसिद्वत्वाद् => ( ( स्व अनुभव ) सिद्वत्वात् TP6) = devido a ter realizado a percepção de si
स्व = próprio
अनुभव = percepção, entendimento
सिद्धत्वात् = n5s = devido a ter alcançado/realizado
असावित्यध्यक्षतया = असावित् अध्यक्षतया
असाविति = असौ इति =
असौ = f1s: adas = essa
इति = “”
अध्यक्षतया = f3s ppp: pelo perceptível
निर्देष्टुमुचिता = निर्देष्टुम् उचिता = [a] agradável definição
निर्देष्टुम् = infinitivo de निर्देष् = definir, guiar
उचिता = ucitā: f1s ppp : ucita = prazeroso, agradável
चितिः विगलितचेत्योपरागा चेतनस्य स्वरूपेणावस्थितिः ।
चितिः significa विगलितचेत्योपरागा चेतनस्य स्वरूपेणावस्थितिः = dissolvida, [o] desejo de fazer brilhar e estabelecida pela própria natureza da consciência
विगलितचेत्योपरागा = विगलित च इति ओप रागा
विगलित च इति ओपरागा =
विगलित = esvaziado, secado, dissolvido
च = e
इति = “”
ओप = fazer brilhar, polir
रागा = f1s = paixão, desejo
चेतनस्य => 6s = da consciência
स्वरूपेणावस्थितिः = स्वरूपेण अवस्थितिः = estabelecida pela própria natureza
स्वरूपेण = pela própria natureza
अवस्थितिः = f1s: avasthiti = situada, estabelecida
स्वरसवाहिनी निरोधकाभावादनिशं स्फुरद्रूपा ।
स्वरसवाहिनी significa निरोधकाभावादनिशं स्फुरद्रूपा = [a] forma da existência do obstrutor [que] vibra incessantemente
निरोधकाभावादनिशं स्फुरद्रूपा = निरोधक अभावत् अनिशम् = incessantemente desde a existência do impedidor
निरोधका = 6s = obstrutor, confinador, impedidor
भावात् = 5s = do ser, da existência
अनिशम् = indec. = incesantemente, continuamente
स्फुरद्रूपा = स्फुरत् रूपा = [a] forma [que] vibra
स्फुरत् = que treme, tremendo, que vibra
रूपा = f1s = forma
सा विमर्शमयत्वाद् वाक् ।
सा significa विमर्शमयत्वाद् वाक् = [a] fala [é] constituída por introspecção
विमर्शमयत्वाद् वाक् = (विमर्शम् अयत्वात् TP6) वाक् =
विमर्शम् = m2s = reflexão, introspecção
अयत्वात् = 5s desde ser constituída
वाक् = fala
तत्रापि स्वरूपज्योतिष्ट्वेनैव प्रकाशनात् स्वरूपव्यतिरिक्तपस्यन्त्यादिरूपा नेयम् , अपि तु परैव, यदागमः – स्वरूपज्योतिरेवान्तः सूक्ष्मा वागनपायिनी इति ।
Portanto, também nesse caso, pelo estado de ser a dispersão do brilho da própria natureza a partir do iluminante, [ela é a] primeira aparência [para os] que enxergam além da própria natureza. E, também, não [é] esta então suprema quando se afastando – [a] luz da própria forma portanto [é o] fim sutil inseparável da fala.
तत्रापि = तत्र अपि =
तत्र = lá, nesse caso
अपि = também
स्वरूपज्योतिष्ट्वेनैव = ( स्वरूप ज्योतिष्ट्वेन 3s, TP6) एव = portanto pelo estado de ser a dispersão do brilho da própria natureza
स्वरूप = própria natureza
ज्योतिष्ट्वेन = 3s = pelo estado de ser a dispersão do brilho
एव = portanto
प्रकाशनात् = n5s = desde o iluminante
स्वरूपव्यतिरिक्तपश्यन्त्यादिरूपा = स्वरूप व्यतिरिक्त पश्यन्ति आदिरूपा = primeira aparência [para os] que enxergam além da própria natureza
स्वरूप = própria natureza
व्यतिरिक्त = indo além, excessivo, imoderado
पश्यन्ति = n1/2p = que veem/enxergam
आदिरूपा = f1s = primeira aparência
नेयम् = न इयम् =
न = não
इयम् = f1s इदम् = esta
अपि => também
तु => e, mas
परैव => परा एव =
परा = suprema
एव = portanto, então
यदागमः = यदा गमः =
यदा = quando, sempre que
गमः = se afastando
स्वरूपज्योतिरेवान्तः = स्वरूप ज्योतिः एव अन्तः = [a] luz da própria forma portanto é o fim
स्वरूप = própria forma
ज्योतिः = m1s = luz
एव = portanto, então
अन्तः = m1s = fim, limite
सूक्ष्मा = f1s = sutil
वागनपायिनी = (वाग् अनपायिनी TP6) = inseparável da fala
वाग् = fala
अनपायिनी = inseparável
इति = “”
शुद्धवाग्रूपत्वाद् येयं वर्णात्मिका , सा प्रत्याहारयुक्त्या गृहीताभ्यामकारहकाराब्यामहन्तेति निरुच्यते , न पुनरहामिति प्रतियमानतयैवेयमहन्ता
Esta que devido à fala pura [é] composta de fonemas, ela pela união na dissolução é terminada por ha [e] entendida por A [e] HA, não é expressa, nem [é] novamente “Eu”. Então esta subjetividade [é] pacificada por restaurar(-se)
शुद्धवाग्रूपत्वाद् = शुद्ध वाग् रूपत्वात्
येयं = येयम् = या इयम् =
या = pron. relativo que
इयम् = f1s इदम् = esta
वर्णात्मिका =वर्ण आत्मिका
वर्ण = letra, fonema
आत्मिका = f1s = composta de fonemas
सा = essa, a, aquela
प्रत्याहारयुक्त्या =प्रत्याहार युक्त्या = pela união com/da dissolução
प्रत्याहार = m = reabsorção, dissolução
युक्त्या = f3s: yukti = união, junção conexão
गृहीताभ्यामकारहकाराभ्यामहन्तेति = गृहीताभ्याम् ( अकार हकाराभ्याम् DVD) अहन्त इति = é terminada por ha [e] entendida por A [e] HA
गृहीताभ्याम् = ppp 3d = pelas as duas recebidas, aceitas, obtidas, entendidas
अकार हकाराभ्याम् = por/com A [e] HA
अहन्त = terminando com HA
इति = “”
निरुच्यते = não expressa
न = não
पुनरहामिति = पुनः अहाम् इति
प्रतियमानतयैवेयमहन्ता = प्रतियम् आनत एव इयम् अहन्ता = então esta subjetividade [é] pacificada por restaurar(-se)
प्रतियम् = restaurar, retornar, é equivalente
आनत = obediente, pacificada
एव = portanto, então
इयम् = f1s इदम् = esta
अहन्ता = f1s = subjetividade, eu-dade
Yoga, Engajamento Social e Política
Por mais ilusório que você pense que o mundo é, para aqueles que estão sofrendo o sofrimento é “real”.
Como tenho notado muito barulho em torno do tema desse texto, resolvi escrever um pouco sobre o assunto. Muitas pessoas envolvidas com Yoga podem se questionar sobre até que ponto um Yogi deveria se envolver com ativismos. Não existe uma resposta final e objetiva para essa pergunta, mas vou apontar alguns aspectos que tenho observado.
Se formos considerar as tradições que se apóiam principalmente no Yoga Sutra de Patanjali, na Bhagavad Gita e em textos chamados Tantras, dificilmente será encontrada alguma menção explícita de dever em relação a engajamento em ativismos. Vejamos, por exemplo, o Yoga Sutra trata especificamente de uma forma de Yoga transcendentalista dirigida para renunciantes e cujo objetivo final é o isolamento. Isolamento, em termos espirituais isolamento da Prakrti e em termos materiais isolamento social. Então, por que alguém iria esperar alguma sugestão de envolvimento social vinda do Yoga Sutra? Seria até injusto com o texto esperar isso.
Algumas pessoas podem argumentar em torno da Bhagavad Gita para falar de uma suposta obrigação de envolvimento político. Provavelmente, essa pessoa não conhece muito bem o Mahabharata, que é o texto ao qual a Bhagavad Gita pertence. No Mahabharata é evidente que todo o confronto de Pandavas e Kauravas é motivo principalmente por questões pessoais entre os familiares. Quando os Pandavas decidem lutar não é para “salvar o mundo da corrupção Kaurava”, mas sim por questões de Dharma Pessoal.
Talvez um alento para aqueles de mentalidade ativista venha do que se conhece sobre o modo de vida das comunidades tântricas, especialmente aquelas não-dualistas. Sabe-se que as comunidades tântricas não-dualistas eram bastante radicais, em termos sociais, para seu tempo por dois aspectos principais: não haver distinção de castas e não haver distinção de gênero em termos hierárquicos. Alguns professores mencionam que, naquelas comunidades, a simples menção a algum tipo de hierarquia por casta ou gênero seria motivo para expulsão da comunidade. No entanto, o que poucos percebem é que essas regras igualitárias eram consideradas apenas dentro da comunidade espiritual, não havia nenhum esforço ou tentativa de impor essa “igualdade” na comunidade externa. Esse igualitarismo na comunidade espiritual decorria do entendimento não-dualista de que todos somos a mesma consciência.
Algumas pessoas ainda tentam trazer a imagem das divindades femininas como símbolos de feminismo. Essa uma tentativa perigosa, sobre a qual sugiro a leitura deste texto. No texto do link, a autora levanta mais questionamentos antes de responder se as deusas indianas são feministas. Uma pergunta que ela faz é: Quem pergunta sobre feminismo? Por que pergunta? Com qual intenção? Sugiro que o leitor investigue um pouco sobre a influência da política nacionalista indiana na propagação dos yogásanas, por exemplo. Será que não estariam tentando fazer algo parecido com as devis? Se olharmos para o texto Devi Mahatmya, veremos que as deusas surgem a partir da energia vital (ou representam a energia vital) dos deuses. E elas veem para resolver questões “pessoais” dos devas que eles sozinhos não estavam sendo capazes de resolver. É claro que estou apresentando aqui uma versão bem literal de interpretação sem muito misticismo ou psicologização (o que tem sido muito comum recentemente).
Porém, as ideias apresentadas nos parágrafos anteriores não servem como argumento para sugerir que um Yogi não deveria se envolver com lutas sociais ou políticas. Na verdade, nesse aspecto creio que não existam deveres ou obrigações. Mas se pensarmos em termos de bom senso, faz sentido que uma pessoa que trilha o caminho espiritual há algum tempo fique indignado diante de situações injustas e queira atuar de alguma forma para a construção de um mundo melhor. O que não faz sentido é querer argumentar a favor de ativismos utilizando textos que são claramente focados em renúncia radical ou em dharma pessoal. Mas se você sabe que seu dharma pessoal é se envolver com tais questões, siga em frente.
Por mais ilusório que você pense que o mundo é, para aqueles que estão sofrendo o sofrimento é “real”.
Poema Místico: Oh Mãe, Quem Realmente
Poema místico de Ramprasad traduzido para o inglês por Leonard Nathan e Clinton Seely.
Oh Mãe, quem realmente
Conhece sua magia?
Você é uma garota louca
Nos deixando todos loucos com esses truques.
Ninguém conhece mais ninguém
Num mundo de Suas ilusões.
Os truques de Kali são tão hábeis,
Nós agimos sobre o que vemos.
E qual sofrimento —
E tudo por causa de uma garota louca!
Quem sabe
O que Ela realmente é?
Ramprasad diz: Se ela decidir
Ser gentil, esta miséria passará.
Poema Místico: Eu não bebo vinho ordinário
Este é um poema escrito pelo poeta shakta Ramprasad Sen que viveu em Bengala no século dezoito. O poema foi traduzido para o inglês por Elizabeth U. Harding. Esta é a tradução livre do inglês para o português.
Eu não bebo vinho ordinário,
mas vinho de felicidade eterna,
quando eu repito o nome de minha Mãe Kali;
Isso intoxica tanto a minha mente que as pessoas pensam que estou bêbado!
Primeiro, meu guru me dá melaço para fazer o vinho;
Meu desejo é o fermento para transformá-lo.
O conhecimento, o criador do vinho,
o prepara para mim, então;
E quando está pronto,
minha mente absorve da garrafa do mantra,
tomando o nome da Mãe para torná-lo puro.
Beba deste vinho, diz Ramprasad,
e os quatro frutos da vida são seus.
~Ramprasad Sen
Seria o “Kundalini Yoga” uma Invenção de Yogi Bhajan?
Philip Roland Deslippe argumenta que o “Kundalini Yoga” foi uma montagem criada por Yogi Bhajan e derivada dos ensinamentos sobre Hatha Yoga de duas pessoas: Swami Dhirendra Brahmachari e o Maharaj Virsa Singh.
Este texto é um resumo adaptado do artigo From Maharaj to Mahan Tantric – The Construction of Yogi Bhajan’s Kundalini Yoga, publicado em 2013 por Philip Roland Deslippe. O artigo pode ser acessado neste link. Antes de apontar alguns trechos do artigo que me chamam a atenção eu gostaria de esclarecer três coisas:
- Kundalini é um termo do Yoga Tântrico que não é propriedade de ninguém. As práticas de Yoga que têm como objetivo despertar a Kundalini podem ser chamadas de Kundalini Yoga e não têm nada a ver com Yogi Bhajan.
- Eu não sou contra a prática de Kundalini Yoga do Yogi Bhajan, inclusive tenho amigos que dão alunas desse Yoga e eu já pratiquei algumas vezes e gostei.
- Em geral, se diz que práticas tântricas exigem a transmissão de um guru e que professores de tantra fazem parte de uma linhagem. O problema é alguém não pertencer a linhagem nenhuma e querer forçar a barra inventando linhagem.
Vamos ao artigo.
Logo no Abstract, Deslippe mostra a que veio e afirma que o objetivo do artigo é argumentar que o “Kundalini Yoga” foi uma montagem criada por Yogi Bhajan e derivada dos ensinamentos de duas pessoas: Swami Dhirendra Brahmachari e o Maharaj Virsa Singh.
Segundo Deslippe, nas aulas de Kundalini se canta o mantra “Ong Namo Guru Dev Namo” com a motivação de se conectar com a suposta tradição de mestres de Kundalini Yoga. Essa tradição teria como elo anterior a Yogi Bhajan o mestre Sant Hazara Singh. Porém, quando essa linhagem é investigada encontram-se registros históricos que relatam uma viagem que Yogi Bhajan fez com 84 de seus alunos para a Índia. Os relatos da viagem são, segundo Deslippe: revelação de professores abandonados e esquecidos, figuras inventadas e um processo de narração e criação de mitos nascidos de necessidade pragmática.
Um fato curioso é que quando Yogi Bhajan começou a ensinar Kundalini Yoga em Los Angeles ele não mencionava Sant Hazara Singh, ao invés disso ele se referia a Virsa Singh como seu professor. Mas embora a recitação do mantra “Naam of Ek Ong Kar Sat Nam Siri Wahe Guru” ensinado por Virsa Singh seja essencial para os alunos de Yogi Bhajan, os elementos típicos da prática não vieram de Maharaj Virsa Singh, mas sim do yogi hindu chamado Swami Dhirendra Brahmachari. O diretor do asharam, Vanmala Vachani, onde Yogi Bhajan teve aulas com Swami Dhirendra Brahmachari o descreve como alguém que frequentava as aulas mas que não era muito próximo do professor nem seu ajudante (acólito).
O Swami Dhirendra Bramachari era visto como um professor de Hatha Yoga, mas o principal texto que seguia era o Sukshma Vyayama, um texto que trata principalmente de práticas sutis para limpeza de nadis e sistemas glandulares. Percebe-se que grande parte do que é ensinado como Kundalini Yoga de Bhajan provém dos pranaymas e bandhas ensinados no Sukshma Vyayama.
Deslippe afirma que no início, os ensinamentos de Yogi Bhajan eram um mistura do que ele aprendeu com Swami Dhirendra Brahmachari e Maharaj Virsa Singh e mantras e cânticos derivados do Sikhismo. À medida que a mistura foi sendo transformada por Yogi Bhajan algumas coisas foram adaptadas para “os jovens americanos”. Por exemplo, Maharaj Virsa Singh não acreditava no Yoga como um caminho espiritual e seus seguidores não praticavam nenhuma forma de Yoga físico. De modo similar, os ensinamentos de Swami Dhirendra Brahmachari eram dados no contexto do código de conduta da Hatha Yoga Pradipika, o que incluia abstência sexual e não ingestão de cebola e alho. Além disso, havia serias desconexões entre o que Yogi Bhajan ensinava e o que ele clamava que seus professores lhe haviam ensinado.
Uma viagem que um grupo de alunos fez com Yogi Bhajan para a Índia acabou tendo uma série de mudanças de última hora e acabou se transformando numa viagem focada em Sikhismo sem que as pessoas tivessem sido avisadas antes. A viagem para a Índia acabou com Yogi Bhajan sendo detido por defraudar um homem chamado Amarjit Singh e o grupo voando do país após serem parados no aeroporto. Após retornarem da viagem fracassada, Yogi Bhajan anunciou que tinha recebido o “manto” de “Mahan Tantric”. Após a viagem da década de 1970 todas as influênciasque Yoga Bhajan clamava ter em relação à linhagem tornaram-se inacessíveis, as figuras de Guru Ram Das e Sant Hazara Singh tornaram-se centrais e qualquer referência a Maharaj Virsa Singh eram dirigidas às figuras centrais ou ao próprio Yogi Bhajan.
Apesar da figura de Sant Hazara Singh ter se tornado central, parece improvável que tal pessoa tenha existido sem que existisse alguma documentação sobre ela em algum lugar.
O aspecto mais significativo da histórica escondida sobre a Kundalini Yoga de Yogi Bhajan é o problema epistemológico da fundação do entendimento da 3HO sobre o que é Kundalini Yoga e sua própria linhagem. Uma dimensão do papel de Yogi Bhajan como filtro de conhecimento nos anos iniciais da 3HO eram as barreiras de linguagem, cultura e experiência pessoal.
Variedades da Prática Contemplativa
As práticas mais profundas de meditação utilizam mantras, cânticos e visualização. Mas é claro que um mestre não vai sair por aí ensinando essas práticas para qualquer pessoa. Assim como tudo na vida, um caminho deve ser trilhado antes de chegar a práticas, supostamente, mais avançadas.
Está se tornando popular o termo prática contemplativa, especialmente em sua versão conhecida como meditação. Com a popularização da Internet, cada vez mais pessoas se propõem a ensinar aquilo que acham que sabem. Há vários problemas envolvidos aqui, talvez o pior deles seja o autodidatismo.
É possível aprender muita coisa sem um professor (mas lendo livros escritos por um), tais como matemática, história, biologia, xadrez, etc. Mas quando se trata de assuntos de espiritualidade e autoconhecimento, só por milagre um autodidata chega a algum lugar. No máximo, o que vai acontecer é a pessoa se tornar o acadêmico insoso que já leu todos os livros e artigos sobre meditação e eletroencefelagrafia mas não é capaz de ficar sentado de olhos fechados por cinco minutos numa almofada.
Às vezes aparece algum autointitulado conhecedor da sabedoria indiana querendo participar de grupos de estudo e meditação mas quando questionado sobre suas práticas pessoais, no máximo o que ele faz é ver vídeos no youtube e ler livros de mestres Pop.
Aqui entra mais uma tentativa de esclarecer equívocos: mais de 99% do que você vê e ouve por aí sobre meditação, não é meditação. Nessa hora lembro da literatura barata que eu lia na adolescência e que só recentemente meu professor me questionou usando como exemplo aquela literatura:
- Você acredita realmente que um ninja escreveria um livro entitulado: Os Segredos do Ninja ?
Agora, pare e pense, você realmente acredita que um grande mestre tradicional iria escrever num livro todos os segredos de uma tradição milenar. Em primeiro lugar, algumas práticas não se aprendem lendo, pois é necessário que alguém que as saiba observe você praticando e te corrija. Por exemplo, a prática de mantras. A maior tentação nossa hoje é buscar algum cardápio de mantras na Internet, escolher aquele que mais nos agrada, de preferência em texto transliterado e depois procurar no Youtube ou em outra plataforma alguém cantando o mantra para tentarmos aprender olhando a transliteração e ouvido a pessoa cantar.
Daí decorrem muitos problemas, por exemplo, a questão dos sons nasais no sânscrito. As palavras escritas em sânscrito mudam seus caracteres e quando vão ser cantadas podem mudar sua sonoridade de acordo com regras bem específicas. Assim, o que acontece geralmente é você vê no texto um caractere mas a pessoa que você está ouvindo no Youtube não pronuncia aquele caractere. O que fazer? O autodidata vai procurar outro vídeo em que a pessoa pronuncie o caractere. Mas qual a forma correta? Em princípio, o autodidata não vai saber, vai procurar cinco versões diferentes do mesmo cântico e fazer uma votação pela maioria das pronúncias escolhendo a que ele supõe que seja a correta. Já imaginou a bagunça e a demora que essa vai ter pra aprender um mantra ou um cântico?
Voltemos a meditação. A maioria das abordagens populares ensinadas, são técnicas de concentração de influência predominantemente budista. São uma tentativa de facilitar a vida das pessoas modernas que não conseguem nem ficar sentadas na almofada. Então, as técnicas de concentração vendidas como meditação vão dizer: perceba a sua respiração, preste atenção quando estiver comendo alguma coisa, etc.
Acontece que as práticas mais profundas de meditação utilizam mantras, cânticos e visualização. O processo de repetir mantras e cânticos seguindo as regras corretas de entonação e de pronúncia provoca estados mentais que conduzem o praticante a um estado de meditação profunda. As visualizações podem ser de dois tipos principais: visualização da deidade e visualização de determinados aspectos espirituais no próprio corpo.
Mas é claro que um mestre não vai sair por aí ensinando essas práticas para qualquer pessoa. Assim como tudo na vida, um caminho deve ser trilhado antes de chegar a práticas, supostamente, mais avançadas. Em primeiro lugar, o básico deve ser dominado: aprender a sentar imóvel por alguns minutos, por exemplo, e a aprender a pronúncia do sânscrito. Em segundo lugar, o mestre deve perceber a dedicação e devoção do aluno ao caminho que está trilhando. Se houver um mero interesse superficial, os segredos não serão revelados.